Está sem remédio? A culpa pode ser da caixa-preta!

Caixa-preta é presente de grego! / Foto de PublicDomainPictures

[su_dropcap style=”flat” size=”5″]N[/su_dropcap]a semana passada você leu aqui que a CONITEC divulgou relatório de recomendação preliminar, desaconselhando a incorporação do riociguate ao SUS, e que isto teria suscitado protestos de associações de pacientes.

Alega-se que os processos de tomada de decisão daquela Comissão seriam pouco transparentes. E que transparência neste domínio tornaria estes processos mais justos.

Este tipo de reação da sociedade não é privilégio do Brasil. Outras agências de Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS) espalhadas pelo mundo também são criticadas, quando suas decisões desagradam pacientes e seus familiares. O prazo da Consulta Pública sobre a incorporação do Riociguate foi prorrogado [su_highlight background=”#d5f427″]até o dia 16 de janeiro[/su_highlight].  

 

 

A prorrogação foi publicada no DOU.

Agora vamos tentar dissecar para você o cerne da questão. Basicamente, processos desta natureza apresentam caixas-pretas que comprometem sua governança democrática e transparente. Isso, a nosso ver, está totalmente em desacordo com o melhor do SUS, que tem como um dos seus principais mantras a participação social. Pode se dizer que as Avaliações de Tecnologias em Saúde (ATS), tais como hoje praticadas, da perspectiva das pessoas que vivem com doenças raras, são o bode na sala do SUS. 

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS),

[su_quote]ATS é a avaliação sistemática das propriedades, efeitos e/ou impactos da tecnologia em saúde. Seu principal objetivo é gerar informação para a tomada de decisão, para incentivar a adoção de tecnologias custo-efetivas e prevenir a adoção de tecnologias de valor questionável ao sistema de saúde.[/su_quote]

[su_box title=”O que é caixa-preta?” style=”bubbles” box_color=”#2215d5″ title_color=”#f0ce48″]Caixa-preta é termo originário do setor de aviação e que mais tarde serviu para definir “um sistema fechado de complexidade potencialmente alta, no qual a sua estrutura interna é desconhecida ou não pode ser levada em consideração em sua análise”[/su_box]. 

Neste momento vamos nos deter em um aspecto das ATS onde reina a absoluta opacidade. Ele também se apresentou no caso do riociguate, comentado na semana passada. Trata-se de uma verdadeira caixa-preta, no Brasil e no mundo: os cálculos empregados por laboratórios e pelas agências de ATS, para justificarem suas movimentações neste tabuleiro do xadrez regulatório em saúde.

O xadrez regulatório é para profissionais! Imagem de klimkin por Pixabay

As ATS se baseiam em modelos econômicos. Como acontece com qualquer “modelo”, eles reduzem aspectos da realidade complexa (aquela que você vive todos os dias) a simples números e variáveis. Isso faz com que se corra o risco de subestimar aspectos essenciais das situações de fato, [su_highlight background=”#d5f427″]principalmente quando estão em questão as necessidades específicas de pessoas que vivem com doenças raras[/su_highlight]. 

No caso brasileiro, a opacidade está mais pendente para o lado das agências de ATS. Isto porque, obrigatoriamente, os laboratórios são obrigados a juntar aos seus processos de solicitação de incorporação de medicamentos farta documentação acerca dos modelos por ela empregados. Fazem isso para tentar convencer a agência sobre sua estimativa do valor da droga candidata. [su_highlight]Mas não se exige da agência de ATS brasileira a mesma obrigação.[/su_highlight]

[su_box title=”Desconfiança mútua” style=”bubbles” box_color=”#2215d5″ title_color=”#f0ce48″]Desconfianças de parte a parte são comuns nestes processos. Os gestores em saúde desconfiam dos cálculos realizados pelos laboratórios ao submeter seus processos para deliberação por estas agências. Os laboratórios suspeitam do mérito das avaliações realizadas por estas agências para recusar seus pedidos. Ambos têm alguma razão em suspeitar. [/su_box]

Polyzos e cols. fizeram um levantamento rigoroso das análises de custo-efetividade que avaliavam, economicamente, métodos de rastreamento de câncer cervical. Verificaram que os estudos apresentados pelos fabricantes de medicamentos nestes processos de ATS subestimavam a precisão do teste de Papanicolaou.

[su_note]Em 1994, o British Medical Journal (BMJ) divulgou sua política editorial para publicação de análises de custo-efetividade, ressaltando que algumas destas análises eram financiadas pela indústria e que esta tinha a expectativa de que tais análises pusessem seus produtos em uma perspectiva favorável. O BMJ argumentou que estas empresas poderiam empregá-las para justificar os preços (muitas vezes abusivos) de seus medicamentos [/su_note]

[su_divider size=”5″]

[su_heading]Pausa para alguns conceitos básicos[/su_heading]

Agora vou fazer um esforço para traduzir temas complexos em linguagem acessível para você. Pediria-lhe um pouco de paciência. Informação qualificada é fundamental para fazer a democracia continuar a avançar e para que você forme opinião sobre assuntos que dizem respeito à sua sobrevivência e de seus familiares, em muitos casos.

Se deseja-se que as decisões tomadas por autoridades públicas sejam vistas como socialmente justas, as pessoas afetadas por estas decisões precisam ser capazes de questioná-las, assegurar que os modelos econômicos para tais decisões são justos e que decisões consistentes foram tomadas. Por isso desenvolvemos este trabalho.

Em primeiro lugar, você precisa saber que, grosso modo, a Conitec se dedica a duas coisas, de acordo com a legislação que a criou. Ela tem “por objetivo assessorar o Ministério da Saúde – MS nas atribuições relativas a:

  • Incorporação, exclusão ou alteração de tecnologias em saúde fornecidas pelo SUS.
  • Constituição ou alteração de Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas – PCDT.

Vamos nos deter apenas na primeira atribuição. Para entender mais sobre a CONITEC clique no vídeo abaixo.

[su_youtube_advanced url=”https://www.youtube.com/watch?v=XNH_6pZIHPo” rel=”no” title=”Vídeo institucional da CONITEC”] 

Em segundo lugar, convém entender o que é um “modelo”. Modelos nada mais são do que ferramentas que visam, entre outras coisas, facilitar a compreensão sobre temas complicados e que permitem que a complexidade de um dado sistema seja reduzida a suas dimensões mais básicas para facilitar o seu entendimento.

Vamos pegar o exemplo de um modelo que visa explicar um processo de comunicação.

Este é um modelo bem basicão e conhecido, que visa mostrar a quem o lê como se dá um processo de comunicação, de forma bem simplificada. É óbvio que ele não descreve toda a riqueza de um processo de comunicação, mas serve para você compreender sua realidade de modo acessível. É como se você tivesse que explicar toda a riqueza da comunicação em três minutos, no elevador. É o que no mundo dos negócios o pessoal chama de elevator pitch (papo de elevador)

[su_heading]Fim da pausa para alguns conceitos básicos[/su_heading]

 É evidente que para um modelo ser útil no campo da saúde, ele precisa ser confiável. E a credibilidade dele está diretamente relacionada a dois fatores, basicamente:

  1. Transparência –  Esta diz respeito à descrição clara das suposições, dos valores dos parâmetros nele empregados, das suas equações e de sua estrutura, visando a sua compreensão pelas partes interessadas.
  2. Validação – Submeter o modelo a testes como aquele que compara os resultados do modelo a dados observados na realidade.

Para que serve um modelo econômico em saúde? 

Agora que você entendeu o que é um modelo, precisa entender para que serve um modelo em saúde. Ele visa oferecer ao tomador de decisão informações quantitativas sobre as consequências das opções a serem consideradas. 

Tudo isto para decidir se ela pode ser incorporada ao SUS sem representar um custo desproporcional ao benefício por ela prometido pelo fabricante, por exemplo, e com relação a outra intervenção (que chamamos de “comparador”)  para a mesma condição clínica já em uso no SUS. Isso  quando o comparador já existe no mercado; mas em doenças raras sabemos que muitas vezes aquele medicamento é o único para determinada necessidade clínica (sem chance de comparador), mas isso é outra conversa. 

Basicamente uma ATS convencional envolve três componentes: 

  1. Síntese das evidências científicas disponíveis sobre uma tecnologia (no caso aqui, um medicamento)
  2. Avaliação econômica
  3. Estudo de impacto orçamentário, que é o efeito estimado sobre o custo total para uma organização (o Ministério da Saúde, p. ex.) ou plano de saúde se houver mudança nas intervenções (passar de uma intervenção em saúde já incorporada ao SUS para uma nova, p. ex.)

Pareceristas contratados externamente pela CONITEC conduzem a ATS (revisão sistemática da literatura existente sobre a intervenção que se quer analisar e dos modelos de avaliação econômica).  São recrutados habitualmente na Rede Brasileira de Avaliação de Tecnologias em Saúde (Rebrats).

Para falar de uma das ‘caixas pretas’ mais importantes na ATS vamos nos deter no item 2, ok? Avaliações econômicas!

Existem diversas abordagens de análise em avaliações econômicas. Elas podem ser baseadas em estudo(s) clínico(s) e/ou modelos matemáticos.

Agora vamos colocar o guizo no gato. Grande parte dos problemas que irão suscitar controvérsias acerca das conclusões desfavoráveis destes relatórios de recomendação produzidos pela CONITEC e entidades assemelhadas diz respeito à falta de transparência dos cálculos que foram empregados na confecção destes modelos matemáticos por ela apresentados (e por assemelhadas). Eles servem para se contrapor dados àqueles apresentados pelo fabricante, e cujos cálculos todos normalmente constam em um pendrive que deve ser obrigatoriamente entregue àquela Comissão. 

Os tomadores de decisão (no nosso caso, a CONITEC) desconfiam dos cálculos apresentados pelo fabricante em seus processos de submissão de propostas de incorporação (mas sempre têm o pendrive para verificá-los, lembra?). E os fabricantes do medicamento, por sua vez, desconfiam dos cálculos realizados pelas agências de ATS para não recomendar a incorporação. Isto porque estes modelos econômicos são sempre estatisticamente sofisticados, mas não são diretamente verificáveis. É  como se dois jogadores de pôquer tivessem que apresentar as cartas que têm na mão. Só assim é possível se compreender a lógica que foi empregada no modelo econômico apresentado por uma parte e outra. 

 Ou, usando agora o cientifiquês, os pressupostos que formam a base do modelo econômico, os cálculos feitos para chegar a determinado resultado, não são transparentes para os atores envolvidos no processo. A não ser que sejam mostrados por ambos! Portanto, não fica claro como os resultados neles apresentados foram obtidos. Isso vale mais para a agência de ATS do que para o demandante (lembra do pendrive entregue pelo demandante?) . O resultado é um diálogo de surdos, que inúmeras vezes irá desembocar em casos de não-incorporação de medicamentos aos sistemas de saúde. 

Justeza procedimental é ‘the name of the game’

Da mesma forma, na outra ponta da linha, e com a vida por um fio, os pacientes são bastante céticos a respeito das decisões tomadas por agências de ATS, como a CONITEC e assemelhadas. Não por acaso, o Tribunal de Apelações do Reino Unido determinou que o NICE (a CONITEC do Reino Unido) liberasse uma cópia plenamente executável do modelo que empregou na avaliação de um tratamento para a doença de Alzheimer, de forma a que fosse observado o princípio da justeza procedimental. Senta que lá vem história ! 

[su_note]De acordo com a Wikipedia, justeza procedimental diz respeito à correção e à transparência dos processos pelos quais certas decisões são tomadas. A lógica por trás deste princípio é a de que, em situações controvertidas, onde é impossível obter um consenso sobre a justeza de determinada decisão (acesso a medicamentos de alto custo no SUS, p. ex.), a observância de certos princípios no modo como a decisão é tomada conferiria maior lisura a ele.[/su_note]

Ouvir todas as partes antes de uma decisão, por exemplo, é um passo  bem básico que seria considerado adequado para que um processo pudesse ser caracterizado como procedimentalmente justo. Ah! E consulta pública não é considerada modalidade de participação de paciente nestes processos, ok? Isto é o que dizem pesquisadores americanos sobre o tema. Mas isso é papo pra outro post. 

E então? Como reduzir esta desconfiança mútua e desenvolver modelos que sejam publicamente confiáveis e transparentes? A saída pode vir de uma iniciativa adotada pela indústria de computação: os códigos abertos (open source) característicos do que se denomina “software livre”.  Você já deve ter ouvido falar nisso, né? Devo colocar um Linux ou Windows para rodar no meu computador? Este tipo de coisa. Pois bem. Fala-se agora na possibilidade de se criar modelos econômicos em saúde com “código aberto”. Isso mesmo! É o que veremos no próximo bloco. 

Modelos econômicos de código aberto são uma saída, mas de difícil implantação

Começam a ser discutidas internacionalmente propostas no sentido de tornar disponíveis, para consulta, os pressupostos empregados nos modelos econômicos pelas partes envolvidas. Sejam os produzidos pela indústria farmacêutica (ou seus consultores) ou aqueles elaborados por agências de ATS, para refutar as conclusões destes. Ambas as partes envolvidas na negociação, ao menos, deveriam ter acesso aos cálculos desses modelos, mediante assinatura de um termo de confidencialidade até. Mas no Brasil isso ainda não acontece.  

Esta providência poderia dar conta de algumas preocupações dos tomadores de decisão, na medida em que permitiria que investigadores tivessem acesso a uma série de modelos alternativos, facilitando sua validação interna. 

A Sociedade Internacional de Farmacoepidemiologia e Desfechos de Pesquisa (ISPOR), uma das mais respeitadas instituições no campo da Economia da Saúde, já criou um Grupo de Interesse Especial cuja missão é:

“Promover um diálogo em bases continuadas a respeito da criação, disseminação, partilha, avaliação e atualização de modelos de efetividade comparativa e de custo-efetividade de acesso livre (código aberto)”.

No entanto, até o momento em que este artigo estava sendo redigido, nenhum grupo de trabalho foi constituído no SIG para tal.  

‘Ciência aberta’ é movimento que está vindo para ficar

A proposta de abertura dos dados usados para informar modelos econômicos em saúde pega uma carona também em tendência atual no mundo da pesquisa denominada ciência aberta (open science).

[su_box title=”O que é Ciência Aberta?” style=”bubbles” box_color=”#2215d5″ title_color=”#f0ce48″]Este movimento prega um modelo de prática científica que, em sintonia com o desenvolvimento da cultura digital, visa a disponibilização das informações usadas pelos cientistas, num movimento oposto ao que caracteriza a atividade habitual dos laboratórios, normalmente conduzidas de forma fechada, em segredo, fora do campo de visão de potenciais concorrentes, por conta da questão das patentes, dentro outras.[/su_box]

No entanto,  como atesta a própria ISPOR, ainda não se descobriu “um processo eficiente para criar, compartilhar, avaliar e atualizar modelos econômicos em saúde”. Algumas poucas instituições começam a estimular o acesso livre a estes modelos e algumas revistas científicas já os liberam para que os pareceristas de seu conselho editorial recomendem ou não a publicação deste ou daquele artigo a eles submetido. Isto daria aos pareceristas maior embasamento sobre a qualidade do estudo. 

Restam dúvidas sobre como encorajar maior transparência junto ao setor e abertura com relação aos pressupostos empregados nos modelos econômicos. Destacamos alguns fatores ainda em discussão:

  • Como estes modelos seriam publicamente disponibilizados? Em um repósitorio digital? Público, privado ou misto?
  • Abertura dos dados ampla, geral e irrestrita ou limitada aos laboratórios e agências de ATS envolvidos na discussão?
  • Como fica a questão dos direitos autorais destes modelos?
  • Como sensibilizar consultores que vivem disso, e mesmo laboratórios, a abrirem mão desta caixa preta?
  •   Quem arcaria com os custos de criação e manutenção destes repositórios digitais?
O diabo mora nos detalhes

Modelos matemáticos, dos quais os modelos econômicos em saúde são uma derivação, estão presentes em todo lugar, graças ao avanço na capacidade de cálculos dos computadores. E, sabendo disso, você deve estar agora se perguntando: Por que ninguém reivindicou a abertura dos dados que levaram a naves até Marte? Ou a abertura dos dados a respeito da trajetória futura de furacões? Por uma simples razão: suas imprecisões ficam logo evidentes em caso de malogro, como na perda de rota de uma nave espacial ou na destruição deixada pelo rastro de um furacão.

Com modelos econômicos em saúde a coisa é bem mais complicada. Eles não são facilmente refutados, na medida em que seus desfechos não são, em linhas gerais, verificáveis. Por exemplo, é dificil prever o que teria acontecido a um paciente se ele recebesse um tratamento B, diferente do A, que foi objeto de um modelo desse tipo. Por esta razão, seus cálculos precisam da luz do sol, precisam vir à tona, para serem validados de forma explícita. 

Não foi à toa que o juiz americano Louis Brandeis cunhou a célebre frase “A luz do sol é o melhor desinfetante”. Isso também vale para Avaliações de Tecnologias em Saúde. Modelos econômicos em saúde precisam ter seus cálculos e pressupostos tornados disponíveis a quem os examina, e eventualmente, para a sociedade em geral. E isso atualmente, como já vimos, ainda não acontece do modo desejado.  E tudo indica que vai demorar. 

Deixe um comentário