Cláudio Cordovil

Terapia gênica em xeque: o vetor AAV está matando?

Tecnologia antes vista como segura passa a ser associada a casos de toxicidade grave, falência de órgãos e mortes. A ciência agora corre para entender os riscos do vetor mais usado em tratamentos genéticos.

Nos bastidores das novas terapias genéticas que prometem curar doenças antes consideradas incuráveis, existe um pequeno vírus que está fazendo barulho — para o bem e, às vezes, para o mal. O nome dele é AAV, sigla em inglês para “vírus adeno-associado”.

Embora o nome assuste, o AAV é um vírus inofensivo, domesticado pela ciência para ser usado como mensageiro: ele leva instruções genéticas até o interior das células humanas, como um “carteiro molecular”. Só que, nos últimos anos, esse carteiro tem se envolvido em episódios graves, incluindo reações perigosas e até mortes.

Neste artigo, você vai entender o que é o vetor AAV, como ele funciona nas terapias genéticas, por que ele é tão usado — e por que, em alguns casos, pode ser perigoso.

Um pequeno vírus com aparência de carteiro — usando boné, bolsa de entrega e crachá escrito “AAV” — bate à porta de uma célula humana, carregando um envelope gigante com a etiqueta “Gene Terapêutico”. A célula sorri, mas atrás da porta, escondidos, estão anticorpos raivosos armados com lanças e escudos, prestes a atacar o AAV assim que ele entrar.

O que é o AAV, afinal?

Imagine que seu corpo é uma cidade, e as células são os prédios. Para consertar um problema nesses prédios (como uma falha genética), os cientistas precisam entregar um manual de instruções em cada apartamento. Mas como fazer isso sem destruir a estrutura? É aí que entra o AAV.

O AAV é um vírus modificado — ele não causa doenças e não consegue se multiplicar no corpo. Sua missão é entrar na célula e entregar um pedaço de DNA terapêutico. Esse pedaço é como um manual de instruções que ensina a célula a fabricar uma proteína que está faltando ou funciona mal.

Ele é pequeno (tem só 4,7 mil bases de DNA), mas pode ser programado para atingir diferentes órgãos — como o cérebro, o fígado, o olho ou o músculo. Isso depende do tipo (ou “sorotipo”) de AAV usado. Já existem mais de 13 tipos catalogados, cada um com uma “preferência” por tecidos diferentes.

O que já foi aprovado com AAV

Até 2024, oito terapias gênicas com vetor AAV receberam aprovação regulatória

TerapiaVetorDoençaRota
GlyberaAAV1Deficiência de LPLIntramuscular
LuxturnaAAV2Amaurose congênita de LeberSubretinal
ZolgensmaAAV9Atrofia Muscular EspinhalIntravenosa
UpstazaAAV2Deficiência de descarboxilase de L-aminoácido aromático Intraputaminal
HemgenysAAV5Hemofilia BIntravenosa
RoctavianAAV5Hemofilia AIntravenosa
ElevidysAAVrh74Distrofia muscular de DuchenneIntravenosa
BeqvezAAVRh74varHemofilia BIntravenosa

Por que ele é tão usado?

A principal razão é a segurança. O AAV não se integra ao DNA humano (ao contrário de alguns outros vírus usados em terapia gênica), o que reduz muito o risco de causar mutações indesejadas. Além disso:

  • Funciona bem em células que não se dividem (como as do cérebro);
  • Provoca poucas reações imunológicas na maioria das pessoas;
  • Pode manter o gene funcionando por anos com uma única aplicação.

É por isso que a maioria das terapias gênicas aprovadas no mundo hoje usa o AAV como vetor de entrega.

Como ele é fabricado?

Parece ficção científica, mas o AAV é “montado” em laboratório. Os cientistas tiram o DNA original do vírus e colocam no lugar o gene que interessa. Depois, usam células especiais (humanas ou de insetos) para produzir as partículas virais com o novo conteúdo.

Esse processo é trabalhoso, caro e envolve múltiplas etapas — uma das razões pelas quais as terapias com AAV ainda custam milhões de dólares.

Como o AAV entra no corpo?

Depende da doença. Existem várias formas:

  • Na veia (intravenosa): para doenças como atrofia muscular espinhal, hemofilia ou distrofia muscular.
  • No olho (subretinal ou intravítrea): para doenças genéticas da retina.
  • Direto no cérebro: em distúrbios neurológicos graves.
  • No músculo: em alguns casos específicos.

A escolha da rota influencia muito o resultado e os riscos.

Casos de sucesso

Até 2024, oito terapias com AAV foram aprovadas. Entre elas:

  • Zolgensma: para crianças com atrofia muscular espinhal (SMA), que nascem com falha no gene SMN1 e perdem os movimentos precocemente. O AAV9 leva o gene correto aos neurônios motores.
  • Luxturna: para um tipo raro de cegueira infantil (amaurose congênita de Leber). O AAV2 entrega o gene RPE65 diretamente à retina.
  • Hemgenix e Roctavian: para hemofilias B e A. O AAV leva genes que ajudam o fígado a produzir os fatores de coagulação que faltam.

Esses tratamentos mudaram vidas. Crianças que não conseguiam sentar passaram a andar. Pacientes hemofílicos que viviam internados por sangramentos passaram anos sem crises. O potencial é imenso.

Mas e os riscos?

O entusiasmo com o AAV é justificado, mas ele não é isento de perigos. À medida que mais pacientes são tratados, efeitos adversos vêm sendo relatados — alguns, infelizmente, fatais.

1. Hepatotoxicidade (lesão no fígado)

É o efeito colateral mais comum. Muitos AAVs se acumulam no fígado, o que pode causar inflamação e aumento das enzimas hepáticas. Em geral, isso é resolvido com corticoides, mas em alguns casos há risco real de falência hepática.

Exemplo: em um estudo com pacientes com hemofilia A tratados com AAV5, mais de 85% tiveram alterações no fígado. Três pacientes com Distrofia Muscular de Duchenne tratados com Elevidys também apresentaram enzimas hepáticas alteradas e faleceram.

2. Toxicidade neurológica (gânglios da raiz dorsal)

Em macacos, doses altas de AAV causaram lesões nos neurônios sensoriais da coluna. Em humanos, esse efeito já foi descrito em um paciente com ELA que recebeu AAV via líquor: ele desenvolveu sintomas neurológicos e alterações em ressonância. Acredita-se que o sistema imune tenha atacado os neurônios que receberam o vetor.

3. TMA – Microangiopatia trombótica

Esse é um efeito raro, mas gravíssimo. Ocorre quando pequenos vasos sanguíneos se inflamam e entopem por coágulos. Pode levar à falência renal e morte.

No caso mais grave, uma criança tratada com Zolgensma desenvolveu TMA e morreu após 40 dias. Já são 9 casos documentados entre os mais de 1.400 pacientes tratados com esse medicamento.

4. Miocardite

É raro, mas já foi registrado em pacientes tratados com vetores AAV9 e AAVrh74 para DMD. Em dois casos, houve inflamação no coração após a infusão. Um dos pacientes morreu.

O que causa esses problemas?

A principal suspeita é a resposta do sistema imunológico — especialmente em pessoas que já tinham anticorpos contra o AAV (por infecções anteriores). Também conta a dose usada: quanto maior, maior o risco.

Em alguns casos, parece haver uma reação em cadeia envolvendo inflamação, ativação de células T, ataque a órgãos como fígado, rins e coração.

Como reduzir os riscos?

Hoje, os cientistas estão tomando várias medidas:

  • Triagem rigorosa dos pacientes (para excluir quem tem anticorpos pré-existentes);
  • Uso de corticoides antes e depois do tratamento;
  • Monitoramento intensivo das enzimas hepáticas, função renal e sinais neurológicos;
  • Desenvolvimento de novos vetores, mais seletivos e menos imunogênicos;
  • Redução das doses sem perder eficácia, usando técnicas como microRNAs e promotores sintéticos.

O AAV vai continuar sendo usado?

Sim. Apesar dos problemas, o AAV continua sendo uma das ferramentas mais eficazes e seguras para terapia gênica. O que está mudando é o grau de cautela — tanto por parte de pesquisadores como de agências regulatórias.

Há também esforços para desenvolver “novas gerações” de AAVs, com melhor desempenho e menor risco. Outra tendência é combinar o AAV com técnicas de edição genética como CRISPR, para corrigir genes de forma mais precisa.

O vetor AAV representa um marco na medicina do século 21. Ele já mudou o curso de doenças devastadoras. Mas não é uma tecnologia mágica: tem limitações, riscos e exige responsabilidade.

A boa notícia é que estamos aprendendo com os erros. As mortes registradas não significam o fracasso da terapia gênica — mas sim um alerta para que ela seja usada com mais rigor científico, ética e cuidado.

O futuro continua promissor. Mas é preciso entender que, por trás do “milagre” da genética, há um vírus — e ele não deve ser subestimado.


Fonte:
Zhao et al. “In vivo applications and toxicities of AAV-based gene therapies in rare diseases.” Orphanet Journal of Rare Diseases (2025) 20:368.
https://doi.org/10.1186/s13023-025-03893-z

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Cláudio Cordovil Pesquisador em Saúde Pública
Jornalista profissional. Servidor Público. Pesquisador em Saúde Pública (ENSP/Fiocruz). Especializado em Doenças Raras, Saúde Pública e Farmacoeconomia . Mestre e Doutor em Comunicação e Cultura (Eco/UFRJ). Prêmio José Reis de Jornalismo Científico concedido pelo CNPq.

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