[su_dropcap style=”flat”]N[/su_dropcap]a edição de ontem (5/8) você leu aqui que a Comissão Européia poderá rever sua legislação sobre medicamentos órfãos (aqueles para tratar doenças raras) depois da constatação de que o incentivo da exclusividade de mercado estaria sendo empregado de forma oportunista pela indústria farmacêutica.
O artigo já está dando o que falar. O médico residente, Ahmed B. Bayoumy, que trabalha em Amsterdã, reagiu ao artigo lembrando outra brecha na legislação européia que permitiria ganhos astronômicos à indústria farmacêutica: o reposicionamento (repurposing) de medicamentos.
Após a comercialização durante anos de um medicamento para determinada indicação, o fabricante postularia seu uso para uma indicação voltada para o tratamento de doenças raras, por exemplo. Desta forma, ele garantiria para o mesmo uma exclusividade de mercado de 10 anos ou mais (e a possibilidade de cobrar preços milionários) para aquele medicamento já existente para outras indicações e que já teve seus custos de Pesquisa e Desenvolvimento recuperados, pelas suas indicações anteriores na bula.
O reposicionamento de medicamentos consiste na utilização de fármacos já estabelecidos para o tratamento de novas doenças. Com isso, em tese, reduzem-se custos e aceleram-se os processos para a validação de um novo medicamento. É uma metodologia que diminui o tempo de pesquisa, abrevia os estudos clínicos e consequentemente os gastos; visto que a farmacologia e toxicologia desses medicamentos já são conhecidas.
O reposicionamento de fármacos seria uma excelente opção para validação de novos tratamentos para doenças raras ou convencionais. Mas, nos últimos anos, as diretrizes constantes da regulamentação de fármacos se tornaram mais rigorosas, criando novas exigências para validação de uso diferente da originalmente prescrita em bula.
Abaixo, reproduzimos o comentário de Ahmed B. Bayoumy em reação ao artigo publicado no British Medical Journal e que mereceu destaque em nosso blog na edição de ontem.
O artigo destacou uma questão importante e desafiadora nos assuntos regulatórios de medicamentos. A legislação sobre medicamentos órfãos alcançou seu objetivo de desenvolver novas terapias para doenças órfãs, mas a preços exorbitantes legalmente autorizados. É um setor tão lucrativo, que em 2015, sete em cada dez medicamentos mais vendidos nos Estados Unidos tinham uma designação de medicamento órfão. [1]
Sentimos falta na excelente investigação dos dois autores de algo sobre os abusos praticados sob amparo da legislação sobre medicamentos órfãos a respeito do reposicionamento (repurposing) de medicamentos.
O reposicionamento de medicamentos é a estratégia científica de adicionar indicações clínicas adicionais a medicamentos previamente licenciados. A vantagem do reposicionamento de medicamentos é que ele pode adicionar novas indicações a um medicamento por custos mais baixos, se comparado ao desenvolvimento de um novo medicamento. [2] No entanto, a falta de benefícios comprovados de um medicamento e os desafios legais e regulatórios podem comprometer o sucesso de iniciativas dessa natureza. [3]
Seria esperado, no entanto, que o reposicionamento de medicamentos para doenças raras não levasse a preços exorbitantes, como aqueles praticados no desenvolvimento de novos medicamentos. No entanto, no mundo real, o reposicionamento de medicamentos órfãos leva a preços elevados. [4] Um exemplo disso é a mexiletina, um medicamento desenvolvido há 40 anos como tratamento para arritmias. Ela recebeu autorização de exclusividade de comercialização por 10 anos pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA) depois de ter sido designada como medicamento órfão para distúrbios miotônicos.
Após o licenciamento, o preço passou de quatro mil dólares por paciente por ano para 80 mil dólares por paciente por ano. Isso representa um aumento de + 2.000%, um claro abuso com o preço da mexiletina. [5]
A atual legislação sobre medicamentos órfãos na União Européia contém uma brecha adicional que pode ser explorada pelas empresas farmacêuticas. O reposicionamento de medicamentos para doenças raras. O problema é que a legislação de medicamentos órfãos leva a pelo menos 10 anos de exclusividade de mercado, o que é um forte incentivo para buscar o reposicionamento de medicamentos existentes [por parte da indústria farmacêutica].
Esse “nicho de mercado”, conforme descrito pelos autores da investigação, é um novo modelo de lucro da indústria farmacêutica. Em medicamentos convencionais (não-órfãos), a inclusão de uma nova indicação na bula (ou seja, reposicionamento de medicamentos) fornece exclusividade de mercado que varia de apenas um ano a 10 anos. [2]
A preparação magistral [por farmácias de manipulação] de medicamentos órfãos é permitida na União Européia sob certas circunstâncias, mas está sujeita a rígidos padrões legais, de segurança e de qualidade. [6,7] A atual legislação sobre medicamentos órfãos estimula o desenvolvimento e o licenciamento de medicamentos para pacientes que de outra forma estariam sem opções de tratamento. No entanto, a legislação atual é absolutamente insustentável, principalmente no que se refere a reposicionamento de medicamentos.
A cada ano, os medicamentos órfãos vêm tomando uma parcela maior do total de gastos farmacêuticos. [8] Assim, a Agência Européia de Medicamentos é agora refém dessa situação e deve pensar cuidadosamente onde colocar sua próxima peça neste tabuleiro de xadrez.
O Parlamento Europeu precisa desenvolver legislação adequada. As empresas farmacêuticas e os investidores de capital de risco quase deram um xeque-mate na Agência Européia de Medicamentos. Esperamos que a EMA, através da pressão de médicos e pacientes, reveja completamente seus procedimentos. .
Ahmed B. Bayoumy
[su_divider style=”dotted” divider_color=”#bc1d1d” link_color=”#e01c1c” size=”7″]
Referências
1. Daniel MG, Pawlik TM, Fader AN, Esnaola NF, Makary MA. The Orphan Drug Act: Restoring the Mission to Rare Diseases. Am J Clin Oncol. 2016;39(2):210-213.
2. Bayoumy AB, de Boer NKH, Ansari AR, Crouwel F, Mulder CJJ. Unrealized potential of drug repositioning in Europe during COVID-19 and beyond: a physician’s perspective. Journal of Pharmaceutical Policy and Practice. 2020;13(1):45.
3. Fetro C, Scherman D. Drug repurposing in rare diseases: Myths and reality. Therapie. 2020;75(2):157-160.
4. Murteira S, Millier A, Toumi M. Drug repurposing in pharmaceutical industry and its impact on market access: market access implications. J Mark Access Health Policy. 2014;2:10.3402/jmahp.v3402.22814.
5. Radboud UMC. Radboud UMC concerned about drug accessbility for patients with rare neuromuscular disease (in Dutch). https://www.radboudumc.nl/nieuws/2019/radboudumc-bezorgd-over-toegankeli…. Published 2019. Accessed 17 November 2019.
6. Sheldon T. Dutch hospital resumes production of rare drug after sourcing purer ingredients. BMJ. 2020;368:m401.
7. Scheepers HP, Langedijk J, Neerup Handlos V, Walser S, Schutjens MH, Neef C. Legislation on the preparation of medicinal products in European pharmacies and the Council of Europe Resolution. European journal of hospital pharmacy : science and practice. 2017;24(4):224-229.
8. Mestre-Ferrandiz J, Palaska C, Kelly T, Hutchings A, Parnaby A. An analysis of orphan medicine expenditure in Europe: is it sustainable? Orphanet journal of rare diseases. 2019;14(1):287.