Cláudio Cordovil

Medicamentos: como as mudanças na saúde global afetam o acesso a terapias para doenças raras

Reflexões de André Medici em evento recente

As políticas de saúde adotadas nos Estados Unidos e na Europa entre 2021 e 2025 estão reescrevendo as regras do jogo para o acesso e o custo de medicamentos. Isso é especialmente relevante para aqueles destinados a doenças raras e as terapias avançadas, como as terapias gênicas e celulares. Segundo o especialista André Medici, essas mudanças sinalizam uma transformação profunda que terá reflexos diretos no Brasil.

O ponto central da virada é a troca de um sistema que paga pela quantidade de serviços (baseado em volume) para um que paga pelo resultado que o tratamento oferece (baseado em valor).

A era do pagamento por valor (VBHC)

Medicamentos novos, como terapias gênicas, podem custar mais de 20 milhões de reais por dose. Diante desses valores altíssimos, os sistemas de saúde não podem mais simplesmente comprar e pagar integralmente, sem garantia de eficácia duradoura.

André Medici explica que, tanto na Europa quanto nos EUA, as agências reguladoras estão implementando reembolsos condicionais. Isso significa que:

  • O pagamento está ligado ao desempenho: se o medicamento funcionar e o paciente atingir os resultados clínicos esperados (como sobrevida ou resposta completa), o fabricante recebe o pagamento.
  • Risco Compartilhado: Modelos inovadores incluem o pagamento parcelado (usado para terapias CAR-T na Itália e Espanha) ou o reembolso se ocorrer falha terapêutica (adotado, por exemplo, na Alemanha).
  • Evidência do Mundo Real: Há uma exigência de monitoramento de longo prazo e coleta de dados clínicos (real-world evidence) para comprovar o valor do tratamento e manter o reembolso.

Além disso, para acelerar o acesso a inovações para doenças graves, o FDA (EUA) criou vias rápidas como a Breakthrough Therapy Designation (BTD) e a RMAT, que priorizam o desenvolvimento desses tratamentos.

O choque americano na precificação global

Os Estados Unidos, historicamente o mercado com os preços de medicamentos mais altos do mundo, passaram por reformas que geram ondas em todo o planeta:

  • Negociação do Medicare (IRA 2022): O Medicare (o sistema de saúde para idosos nos EUA) ganhou o poder de negociar diretamente os preços com os fabricantes, algo inédito e focado em medicamentos de alto custo.
  • Política da Nação Mais Favorecida (MFN): uma ordem executiva implementada em 2025 visa alinhar os preços dos EUA aos de outros países desenvolvidos. Os EUA não aceitarão pagar mais que a média internacional.

Essa pressão para reduzir os preços nos EUA impacta diretamente o Brasil. Se as margens da indústria farmacêutica global forem comprimidas, existe o risco de que fabricantes adiem ou reduzam os lançamentos de novos medicamentos no mercado brasileiro.

Em contraste, outras políticas americanas podem elevar custos. A proposta de tarifas de 25% sobre medicamentos, se implementada, pode aumentar os custos anuais em US$ 51 bilhões e elevar os preços ao consumidor em até 12,9%.

A saúde pública e a privatização crescente nos EUA

Simultaneamente à regulação de preços, o sistema de saúde americano passa por uma reestruturação do financiamento público, marcada pela privatização crescente.

  • Houve uma expansão dos planos privados (Medicare Advantage), tornando-os o padrão, e um aumento da dependência de seguradoras privadas.
  • Programas sociais como o Medicaid e a Lei de Cuidados Acessíveis (ACA) enfrentam propostas de cortes e redução de financiamento.

Os reflexos para o Brasil: O desafio da sustentabilidade

O Brasil não está imune a essas tendências. André Medici aponta que as experiências internacionais pressionam o país a adotar modelos de financiamento mais sofisticados.

  • Necessidade de Inovação Contratual: A sustentabilidade do SUS e da saúde suplementar na incorporação de terapias de altíssimo custo (como Zolgensma ou CAR-T) dependerá da adoção de contratos de risco compartilhado e pagamento por performance, que hoje são raros no Brasil.
  • Reforma na CMED: será necessária uma revisão nas regras de precificação da CMED (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos) para que os preços no Brasil se baseiem no valor e nos resultados clínicos, e não apenas em tetos rígidos.
  • Acesso e Judicialização: No SUS, o acesso a esses tratamentos caríssimos é frequentemente moroso e dependente de judicialização. A criação de soluções estruturadas de reembolso, com segurança jurídica, é crucial para evitar decisões isoladas e orçamentariamente instáveis.

Em conclusão, a saúde global está em um processo de especialização e inovação tecnológica (impulsionada por biotecnologia e IA). Contudo, para que essa inovação chegue de forma equitativa ao Brasil, é imperativo que o país se alinhe à lógica global de valor, reforçando a regulação e criando instrumentos contratuais que equilibrem a inovação com a sustentabilidade fiscal.

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