Cláudio Cordovil

Os fins justificam os meios?

O Ministério da Saúde já teria um novo coordenador para doenças raras. Falta só ser nomeado. É o senhor Natan Monsores de Sá. Mal esperou sua nomeação sair no DOU, como manda a etiqueta do funcionalismo público, e circula desenvolto pelos corredores retribuindo acenos e rapapés.

No governo Bolsonaro, que promoveu uma destruição completa do que se poderia chamar de saúde (mental, individual, coletiva) , Natan Monsores de Sá emprestou seu nome a um projeto necropolítico.

O sr. Natan até então era professor universitário da Faculdade de Ciências da Saúde da UnB, departamento de saúde coletiva.

Trailer do filme “Eles poderiam estar vivos”

Natan prestou consultoria oficial a ex-ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, pois era a esta pasta que as doenças raras estavam vinculadas no governo anterior.

Serviu voluntariamente ao antigo governo. Seu currículo Lattes foi há pouco minuciosamente revisado pelo autor para suprimir passagens mais funestas pelo governo anterior, na qualidade de assessor/consultor do Ministério do Direitos Humanos e da Mulher, pasta comandada por Damares Alves.

Desta forma, associou de forma inequívoca e indelével seu nome a um projeto que foi a completa negação da Saúde Pública como ferramenta para a promoção da justiça social.

O que diria Sergio Arouca, pai da Reforma Sanitária?

Sartre:

O santo padroeiro dos que têm caráter

O caso me faz lembrar Sartre e sua filosofia.

O nome de Sartre costuma assustar, mas vamos traduzir aqui de forma modesta e ligeira o cerne do seu pensamento, de forma que você entenda. 

Jean-Paul Sartre é um dos pais de certa modalidade de existencialismo, corrente filosófica e movimento intelectual que surge em meados do século 19 e que ganha notoriedade no século 20, em sua vertente francesa. 

A existência do homem precede

a sua essência

Mas o que diz Sartre sobre a existência humana? Para ele, a existência do homem precede sua essência.

Dito assim fica dificil entender. Mas vamos tentar explicar melhor.

Diante de um bloco de mármore, um escultor, que começa a lapidá-lo, já tem uma idéia ou mesmo já sabe o que o mármore irá se tornar.

A escultura depende dessa ideia prévia que está na cabeça do escultor. Nesse sentido, sua produção, seu ser (essência), antecede sua existência. Já está tudo ali na cabeça do artista antes de vir à luz. 

Já o homem, para Sartre, não tem a mesma sorte.

Como não há alguém que o tenha imaginado antes (é importante destacar que o existencialismo de Sartre é ateu), a essência do homem não é determinada.

É uma construção que se fará mediante as escolhas que este homem fizer ao longo de sua vida (e aqui avancei algumas casas no nosso argumento, que prossegue em câmera lenta no parágrafo seguinte). 

“O homem está condenado a ser livre (…) Uma vez jogado no mundo ele é responsável por tudo que faz” 
Sartre – O existencialismo é um humanismo.

A ideia de que o homem se constrói a si mesmo em  Sartre chama-se “liberdade”. Liberdade para Sartre não é libertinagem, não é vale-tudo, não é oba-oba, mas um fardo terrível do qual não conseguimos escapar.

Afinal somos responsáveis por nossas escolhas. Somos livres para escolher o que fazer, com quem se associar, a que iniciativas nosso nome emprestar. E isso é, para o filósofo francês, fonte de “angústia”.

O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si  mesmo; esse é o primeiro principio do existencialismo
Sartre – O existencialismo é um humanismo

Na filosofia de Sartre, não viemos ao mundo com um manual de instruções . É o que escolhemos DELIBERADAMENTE fazer, como seres conscientes, que define a matéria de que somos feitos e sobretudo nosso caráter. 

Portanto a nossa responsabilidade é muito maior do que poderiamos supor, pois ela engaja a humanidade inteira. 
Sartre – O existencialismo é um humanismo


A má-fé, em Sartre

Legendas em português disponíveis nas configurações do YouTube.

Resumidamente, para Sartre, má-fé resume-se a uma predisposição que temos de imaginar que NÃO teríamos alternativas diante das escolhas que acabamos fazendo: podemos manter um relacionamento insatisfatório por décadas porque achamos que nada há o que fazer quanto a isso; resignar-se a um emprego infeliz porque é preciso ganhar o sustento ou servir a ridículos tiranos porque é o que me cabe enquanto servidor público. 

A “liberdade” em Sartre nega tal resignação.

Somos livres para escolher o que nos tornamos. E isso é fonte da “angústia”, que rondará todas nossas escolhas, segundo ele.

Mas também é fonte de regozijo, se alinhamos o que escolhemos ao que é o certo a fazer. E aqui entra a Política com P maiúsculo. Escolher servir ao tirano não é algo trivial. Não é como afagar um pet ou escovar os dentes. É uma decisão que engaja a mim, a você e a humanidade inteira! 

Voltando…

O novo coordenador talvez deseje que esqueçamos o que fez no verão passado. O novo governo, democrático, o galardoa retirando-o do proscênio de um projeto necropolítico, ao qual emprestou voz e nome.

O novo coordenador provavelmente se justificará dizendo que não tinha escolha. à ocasião (má-fé sartriana). Tinha sim ! Todos temos!

E poderá argumentar que atuou no governo passado para reduzir danos. Seria algo assim como que se alguém dissesse que decidira ingressar na Schutzstaffel também conhecida como as SS de Hitler para evitar um mal maior aos judeus.

O tribunal da História julgará os que deliberada e voluntariamente escolheram trabalhar para a promoção do intolerável nos quatro anos mais infelizes do resto de nossas vidas. 

Eles estão entre nós.

Querem que esqueçamos seu vergonhoso papel.

Mas este texto aqui permanecerá, como um ferrão a manietá-los até o fim dos tempos.

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