Os Desafios de Implementação da Portaria 199/2014: um balanço

 

Estudo “Desafios de Implementação da Portaria 199/2014” mostra as dificuldades enfrentadas por quem deseja implementar serviços especializados ou de referência. O evento contou também com a visão de pesquisadores e de associação de pacientes

Durante dois dias cerca de 60 gestores de saúde, de todas as regiões do Brasil, debateram alguns dos entraves que dificultam a implementação da Portaria 199, de 2014, voltada para a atenção integral às pessoas com doenças raras, e compartilharam as suas dúvidas e experiências. O encontro, promovido pela Prospectiva, consultoria internacional focada no entendimento da lógica e do impacto da atuação de governos sobre os negócios de seus clientes, contou com o suporte científico do pesquisador Roberto Giugliani, professor do Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Diretor do Centro Colaborador da Organização Mundial da Saúde e Membro Titular da Academia Brasileira de Ciências, e apoio da PTC Therapeutics, empresa voltada para o desenvolvimento de terapias para doenças raras, com foco em distúrbios genéticos e oncologia. O evento foi realizado na segunda quinzena de maio, em Porto Alegre.

A Portaria 199 instituiu a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras e aprovou as Diretrizes para Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), com incentivos financeiros para serviços credenciados de atenção especializada e de referência, inclusive com a oferta de atendimento multidisciplinar. Essa regulação é considerada uma vitória para as várias associações de pacientes que se organizam em prol da melhor qualidade de vida para as pessoas com doenças raras no Brasil. Afinal, ter uma doença rara significa pertencer a um grupo de pessoas com distúrbios que afetam até 1,3 a cada duas mil pessoas, segundo a Organização Mundial de Saúde. Uma representação média de apenas 468 mil por enfermidade dentro da população mundial atual de 7,2 bilhões de pessoas.

Para entender como tem sido o seu avanço e, principalmente, compartilhar as melhores práticas e desafios, a Prospectiva ouviu seis dos oito serviços de referência credenciados para o atendimento a esses pacientes. O objetivo foi levantar, em detalhe, como foi feito o processo de habilitação e credenciamento, as dificuldades e as soluções encontradas, além de captar como está ocorrendo o financiamento dos serviços e buscar recomendações para as instituições que também almejam o credenciamento.

Para Lucas Corrêa, diretor da Prospectiva, que também apresentou as diretrizes dessa regulação, entre os principais achados do estudo “Desafios da Implementação da Portaria 199/2014”, está o fato de ser um processo que envolve o diálogo constante entre a instituição solicitante e os gestores públicos, tanto municipais quanto estaduais, principalmente para garantir o acesso aos recursos transferidos pelo Ministério da Saúde.

“Em nosso levantamento, percebemos que a habilitação e o credenciamento de novos serviços depende muito do diálogo entre todos os envolvidos e que, dentro das instituições solicitantes, os profissionais de saúde precisam trabalhar lado a lado com o pessoal administrativo para garantir que os serviços prestados sejam devidamente informados no sistema de reembolso do SUS, assegurando o recebimento das verbas previstas”, explica.

O executivo ainda aponta que as instituições podem pedir o apoio de congressistas, deputados estaduais, vereadores, além da sociedade médica e de pacientes, para evidenciar a importância dos serviços especializados e de referência dentro da rede de atenção à saúde de uma determinada localidade e, assim, pressionar por um retorno mais célere do Ministério da Saúde em relação ao processo de credenciamento.

“Precisamos compreender que a rede de atenção às doenças raras, da qual devem fazer parte os serviços especializados e de referência, pela característica ampla e multidisciplinar do cuidado, precisa estar totalmente integrada às outras redes temáticas e à lógica de organização descentralizada e hierarquizada do cuidado dentro SUS. Temos um sistema complexo e com limitação de recursos, o que reforça a necessidade de os gestores de saúde estabelecerem a criação desses serviços dentro da lógica de funcionamento do SUS, sob pena de utilizarmos mal os recursos e não atendermos adequadamente às pessoas que precisam deles”, completa.

Nesse sentido, Diel Júnior, do Hospital de Apoio de Brasília, no Distrito Federal, trouxe a sua experiência à frente de um serviço de referência credenciado e a sua visão sobre os principais tópicos que impactam a gestão, principalmente financeira, da instituição, detalhando o que é possível ou não fazer de acordo com a legislação vigente. “Temos, como gestores, que entender profundamente as normas da portaria, as leis orçamentárias e saber como melhor apresentar o projeto orçamentário para o ano seguinte. Esse é um aprendizado constante e indispensável. E ainda é importante o envolvimento de outros atores, Ministério Público e Poder Legislativo, que podem ampliar os recursos necessários ao melhor atendimento das pessoas portadoras de doenças raras”, afirma.

O Hospital de Apoio de Brasília foi um dos entrevistados para o estudo da Prospectiva, além da APAE de Anápolis (GO), do Hospital Infantil Maria Lucinda (PE), do Ambulatório de Especialidade da Faculdade de Medicina ABC (SP), Hospital das Clínicas de Porto Alegre (RS) e Hospital Pequeno Príncipe (PR).
Para o médico geneticista Roberto Giugliani, do Hospital das Clínicas de Porto Alegre, é fundamental que os serviços de referência em doenças raras conheçam como o sistema funciona, suas possibilidades e limitações, e como estão sendo realizados os processos nas instituições já credenciadas.

“Precisamos fazer com que os recursos investidos pelo Ministério da Saúde nos Serviços de Referência em Doenças Raras (SRDR) se traduzam em benefícios palpáveis para os pacientes, o que nem sempre tem ocorrido em função do modo como os recursos trafegam – por meio das instituições que abrigam os SRDRs – e das limitações dessas instituições para utilizar os recursos para as atividades previstas na portaria 199/2014. Também é importante que os serviços que estão pleiteando a habilitação entendam o que está acontecendo e saibam como resolver as pendências para superar as dificuldades e conseguir esse credenciamento”, afirma.

Em sua palestra, Giugliani apresentou um panorama sobre a evolução da especialidade genética médica no Brasil, sobre os avanços em pesquisas clínicas com doenças raras e sobre as dificuldades que os pacientes encontram para obter um diagnóstico e iniciar um tratamento, que geralmente é multidisciplinar, com poucas ou nenhuma terapêutica específica. Nesse sentido, o médico ressaltou o progresso conquistado em relação à redução do tempo necessário para registro de novos medicamentos para doenças raras, bem como a flexibilização pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) em relação à política de acesso ao medicamento de pesquisa após os estudos. “Graças a modificações nas políticas globais em relação às drogas órfãs, hoje temos mais de 500 novos tratamentos para doenças raras em desenvolvimento”, declarou.

Já a visão do paciente foi apresentada por meio da participação de Antonie Daher, fundador e presidente da Casa Hunter, associação que auxilia pessoas com várias enfermidades raras, desenvolve políticas públicas, busca e incentiva pesquisas clínicas voltadas para a descoberta de novas terapias. Para Daher, as doenças raras nunca tiveram tão em voga como agora. “Por isso mesmo, precisamos trabalhar juntos – pacientes, médicos, gestores de saúde – e realmente fazermos com que as políticas sejam implementadas, de uma maneira sustentável para todos”. O empresário, pai de um filho raro, apontou as diversas dificuldades vividas pelas famílias, que vão desde a dificuldade de deslocamento do paciente de sua residência para o atendimento, em outra cidade, passando pela falta de acesso aos medicamentos, falta de uma visão multidisciplinar no tratamento, entre tantas outras questões.

“O momento no qual nos encontramos, onde a sustentabilidade do sistema público de saúde está em pauta, é imprescindível promover o debate e a troca de experiências para que o setor progrida e os benefícios sejam cada vez maiores, também para o governo, mas, principalmente, para os pacientes raros”, completa Lucas Corrêa.

Fn | lLorente y Cuenca

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