Na semana em que celebramos os 40 anos da Lei dos Medicamentos Órfãos, convém recordar o papel que um ator desempenhou nesta inegável conquista.
Um artista norte-americano teve papel importantíssimo na aprovação da lei nos Estados Unidos, que possibilitou a criação de incentivos para a produção de medicamentos para o tratamento de doenças raras (a Lei dos Medicamentos Órfãos). Trata-se de Jack Klugman, o ator principal da série Quincy, M.E.
Quincy, M.E. (também conhecida como Quincy) foi uma série televisiva americana de suspense médico. Produzida pela Universal Studios, ela foi ao ar pela emissora NBC de 3 de outubro de 1976 a 11 de maio de 1983. Nela, Klugman faz o papel de um médico legista que rotineiramente participa de investigações policiais.
Klugman foi o primeiro ator a encarnar na televisão o papel do perito criminal, especializado em patologia forense. Fórmula que depois inspiraria uma enorme variedade de séries televisivas do gênero Crime Scene Investigation.
Tudo começou assim. Em meio a um debate que se travava no Congresso americano sobre a questão dos medicamentos órfãos (aqueles usados para tratar doentes raros), o jornal Los Angeles Times publicou um artigo que contava a história de Adam Ward Seligman.
Vivendo com a síndrome de Tourette, Seligman se vira obrigado a contrabandear o medicamento pimozida, do Canadá, para continuar seu tratamento. Na época, a pimozida não tinha autorização para comercialização nos EUA, e estava sendo testada para outras indicações de doenças mais frequentes, mas não para a doença de Seligman.
Como a pimozida não foi bem-sucedida nos testes clínicos para a doença mais frequente, para a qual estava sendo avaliada, o laboratório optou por descontinuar sua produção, deixando Seligman e outros pacientes sem o medicamento. Este pode ser considerado um dos fatos que precipitou toda a luta dos doentes raros por medicação.
A pimozida, que posteriormente chegou a ser comercializada como neuroléptico, teve sua produção descontinuada pela fabricante por “baixo interesse comercial”. Parece que os doentes AINDA precisam ter doenças lucrativas, se quiserem ter medicação. E isso com a Lei de Medicamentos Órfãos aprovada!
O artigo do Los Angeles Times chegou ao conhecimento de Maurice Klugman, irmão de Jack e produtor da série televisiva, que comentou o caso com ele. Daí surgiu a idéia de se dedicar um episódio de Quincy M.E. ao problema dos medicamentos órfãos e ao drama dos doentes raros, a partir do relato ficcional das dificuldades enfrentadas por um portador da síndrome de Tourette.
Assim, produziu-se o episódio intitulado Raramente em silêncio, nunca ouvido (Seldom silent, never heard), que foi ao ar em 1981, pela NBC. Adam Seligman atuou como consultor técnico do episódio, para auxiliar a produção na caracterização do personagem que padeceria de sua mesma condição.
Na trama, o médico Arthur Ciotti (representado pelo ator Michael Constantine), colega de Quincy (Jack Klugman), vai ao seu laboratório e lhe faz um pedido inusitado: doar o cérebro do jovem para estudos, visando descobrir a cura para a síndrome. Isto porque o laboratório privado em que Ciotti trabalhava não via interesse comercial em tal estudo.
Então, o fictício personagem Quincy se transforma em um árduo defensor das pesquisas públicas para o tratamento das doenças raras, depondo sobre o tema, na trama, diante de autoridades.
Eis que a vida imita a arte
E aqui acontece um fato curioso. O epísódio fora ao ar cinco dias antes da segunda rodada de audiências públicas no Congresso americano sobre o tema. Por conta da repercussão do mesmo, Jack Klugman foi convidado a participar das audiências lá realizadas e dedicadas ao assunto. Isto despertou um extraordinário interesse da mídia para a causa. Era a vida imitando a arte.
Uma segunda chance para conferir o poder da mídia nestes debates se deu, em 1982, quando um novo episódio da série (Give me your weak) tratou do problema de outra doença rara, a mioclonia, num momento em que o projeto de lei sobre medicamentos órfãos (Orphan Drug Act) enfrentava dificuldades para sua aprovação.
As associações de pacientes, unidas, aproveitaram esta segunda oportunidade proporcionada pelo seriado para lançar um jornal e uma campanha para que os cidadãos americanos telefonassem para a Casa Branca, de modo a pressionar o presidente Ronald Reagan a sancionar a lei proposta.
E o resto é História.
Até hoje, estudiosos do tema reconhecem que a participação de Jack Klugman na audiência pública sobre medicamentos órfãos no Congresso americano, na esteira da apresentação do episódio de Quincy, M.E., foi muito provavelmente o mais importante fato a acelerar a aprovação da lei, que mais tarde beneficiaria doentes raros em todo o mundo, inclusive no Brasil.
Jack Klugman morreu em 24 de dezembro de 2012, aos 90 anos, por conta das complicações de um câncer de próstata. Adam Seligman, em fevereiro de 1999, aos 37 anos.