Muito além do SUS (IV) : Centros de Referência e Recomendações Finais

Imagem de TheAndrasBarta por Pixabay

[su_dropcap style=”flat”]H[/su_dropcap]á algumas semanas, iniciei aqui a publicação de uma série de quatro posts comentando relatório da Comissão de Ética da Alemanha intitulado Os desafios da provisão de cuidados para doenças raras. Hoje publico a última parte desta série, tratando da importância dos Centros de Referência para diagnóstico e tratamento destas enfermidades, a complexidade de sua administração e os altos custos envolvidos na tarefa. Dentro do possível, vou promover um diálogo aqui entre a situação alemã e brasileira neste campo. Adicionalmente, aponto as recomendações finais do relatório.

Esta série de posts tem se revelado bastante esclarecedora, em parte devido à falta de massa crítica nacional de pesquisadores que compreendam as especificidades da tarefa de cuidar de doentes raros. Constato certo preconceito no campo acadêmico da Saúde Coletiva (uma jabuticaba brasileira, que guarda algumas semelhanças com a Saúde Pública) com relação a esta população de enfermos.

Criticam a expressiva soma de recursos dispendida para prover acesso a medicamentos a eles destinados, mas são incapazes de analisar e prover soluções alternativas com foco na atenção primária, na prevenção ou diagnóstico destas doenças. O próprio aparato estatal brasileiro incentiva a adoção  de práticas farmacocêntricas. Basta ver o papel da CONITEC e das instituições judiciárias neste campo. Muito já se falou sobre a farmaceuticalização da saúde pública, mas sobre isso não vou me alongar aqui. Prometemos voltar ao assunto em outra ocasião.

Há muito tempo me intriga a inépcia e incompetência do campo da Saúde Coletiva para tratar de questões sociais suscitadas na esteira das conquistas derivadas do Projeto Genoma Humano. Sobre este mal-estar, já escrevi no primeiro ano deste blog.  Recentemente escrevi uma resenha de livro de Áurea Ianni, pesquisadora da USP, sobre os limites desta revolução que foi a criação da Saúde Coletiva na década de 1980 e que já revela sinais de esgotamento teórico. Mas ainda não foi publicada, o que me impede de divulgá-la aqui.

Mas, voltando. A primeira parte desta série tratou da vulnerabilidade médica, social e econômica das pessoas que vivem com doenças raras. Abordou também os aspectos éticos que devem presidir as relações com este que é considerado um dos grupos mais vulneráveis da sociedade em qualquer parte do mundo. A segunda parte  abordou as medidas necessárias para reduzir tal vulnerabilidade. Já a terceira falou sobre os desafios ensejados pelos medicamentos.

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Agora vamos resumir para você, abaixo, o que o relatório diz sobre centros de referência, que no Brasil são disciplinados pela Portaria 1999/2014. 

[su_heading size=”26″]A importância do trabalho em rede[/su_heading]

O documento destaca a importância central dos centros de referência abrigados em sistemas de saúde. Devido ao baixo número de pacientes por doença rara, o cuidado de qualidade só pode ser entregue por especialistas altamente qualificados concentrados em unidades especializadas. É fácil entender. Pense assim no mundaréu de gente buscando todo tipo de demanda em uma unidade do SUS e você, pobre doente raro, tentando ser atendido por um cara que pouco sabe de doenças raras, que acabou de atender uma senhora com palpitações. Não pode dar certo.

É sempre bom ter em mente que a Alemanha é um país do tamanho do estado do Mato Grosso do Sul. Para um país de dimensões continentais como o nosso, as necessidades detectadas pelos autores alemães do relatório se multiplicam de forma gigantesca.

O documento recomenda o incentivo à pesquisa clínica neste campo em bases regionais e transfronteiras (referindo-se ao continente europeu). No Brasil a única coisa que se sabe é que o Mercosul (que supostamente promoveria a integração do continente latino-americano) tem sido cronicamente esvaziado por motivações ideológicas.  O Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (Isags) poderia também ser uma esperança neste campo, mas teve suas atividades encerradas.

O tempo gasto para diagnóstico e tratamento destas doenças também é apontado como um problema pelo relatório, porque exige cooperação intensiva entre especialistas a nível nacional e internacional. Para minimizar o problema, os autores recomendam a gestão da qualidade através de registros de pacientes (patient registries), bases de dados com informações fundamentais para o avanço das pesquisas clínicas no campo das doenças raras. No Brasil eles engatinham ou são colonizados por instituições públicas ou privadas sem maiores preocupações com sua governança democrática e ética.

Destaca-se também no relatório a necessidade de os pacientes disporem de unidades especializadas nas proximidades de sua casa. O Brasil (aquele país de dimensões continentais, lembra?) possui 16 centros desta natureza concentrados em algumas capitais e com escassa documentação sobre seu real funcionamento. A telemedicina seria um poderoso aliado dos doentes raros, segundo os autores do documento. No Brasil, há capacidade instalada em telessaúde mas iniciativas tímidas e a conta-gotas voltadas para doenças raras, dada a dimensão do problema.

[su_box title=”Não está sendo fácil (nem pros alemães)!” style=”glass” box_color=”#2215d5″ title_color=”#f0ce48″ radius=”5″]

Em 2010, o Ministério da Saúde da Alemanha, em parceria com o Ministério da Educação e Pesquisa daquele país e a Aliança pelas Doenças Raras Crônicas fundaram a Liga Nacional de Ação para as Pessoas com Doenças Raras (NAMSE).

Todos os 28 parceiros da assinaram uma declaração conjunta definindo a meta comum de melhorar a saúde e qualidade de vida dos alemães com doenças raras, em resposta a uma recomendação da União Européia. Trata-se de um forum que inclui os principais atores no sistema de saúde e nas associações de pacientes.

A NAMSE preparou um plano de ação nacional em doenças raras que foi publicado em 2013. Das 52 sugestões, em quatro áreas essenciais (“centros especializados”, “diagnósticos acelerados”, “informação acessível” e “intensificação da pesquisa”, só oito haviam sido plenamente realizadas, em 2017, 21 estavam em vias de serem implantadas e 10 estavam em fase de planejamento. Treze delas não haviam sido consideradas até então.

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[su_heading size=”26″]Altos custos[/su_heading]

O bom deste tipo de publicações internacionais, como a que estou divulgando aqui, é lançar luz a problemas que no nosso país pouco se abordam, como por exemplo, os altíssimos custos exigidos para infraestrutura de centros desta natureza, para seu adequado funcionamento. É problema que o relatório sugere ter sido mai administrado até mesmo em um país que é a locomotiva da União Européia e do capitalismo global.  Diz o documento:

Embora o Ministério da Saúde tenha assegurado que financiamento adicional para centros de doenças raras tenha sido, teoricamente, garantido, existem indicações de que as dificuldades financeiras ainda não foram solucionadas.

Pensou no país tropical agora, né? Eu também!

[su_heading size=”26″]Complexidade do sistema[/su_heading]

Agora voltemos a pensar no país do tamanho do Mato Grosso do Sul (a Alemanha), para entender a seriedade e compromisso dos autores do relatório diante dos problemas ensejados na oferta de cuidado a doentes raros.

O relatório aponta a rede complexa e extensa que habitualmente caracteriza sistemas de saúde como um complicador para os doentes raros. Ficaria difícil para eles saber a quem se reportar, a nível dos órgãos de Estado, para reclamar de eventual problema em suas demandas específicas.

Agora vem a parte pitoresca, apontada pelos analistas da Comissão de Ética da Alemanha, como um problema naquele país de dimensões minúsculas, do tamanho daquele estado do Centro-Oeste que já mencionamos.

Muitos pacientes acham simplesmente incompreensível que ainda seja impossivel contratar ambulatórios com a necessária equipe de especialistas devido a problemas de custo, enquanto que, por outro lado, medicamentos dispendiosos que apresentam discreto efeito sejam elegíveis para reembolso [por parte do governo]

Tá pensando no que eu estou pensando, caro leitor e/ou cara leitora?

Pista: Em 2016, a despesa total com medicamentos em brigas judiciais chegou a 1,2 bilhão de reais.  E aqui não devemos culpar os pacientes, porque grande parte de sua busca desesperada por medicamentos se deve à paupérrima rede de assistência para tratá-lo no País. É desonesto e  moralmente condenável culpar o paciente pagador de impostos por estas mazelas. Pagamos uma burocracia gigantesca para, no mínimo, tentar buscar soluções para estes problemas.

O relatório cita o exemplo da fibrose cística. Um grupo de especialistas para tratá-la custaria aproximadamente 1% do que se gasta anualmente com medicamentos de custos astronômicos, que acompanham o paciente pelo resto da vida.

Não posso me alongar aqui, mas remeto os interessados à leitura de um dos raros diagnósticos sobre a situação de centros de referência no país tropical, abençoado por Deus. É pouco esclarecedor, mas é uma dádiva na escassez de informações sobre o tema neste país democrático e republicano.

Aliás, o que foi feito da Coordenação Nacional dos Raros, anunciada pela ministra Damares, há algum tempo. Eu realmente desconheço. Se alguém souber, comenta aqui embaixo.

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[su_heading size=”26″]Recomendações finais[/su_heading]

O relatório alemão aponta algumas recomendações. Para lê-las, clique nos links abaixo.

[su_accordion][su_spoiler title=”Oferta do cuidado” open=”no” style=”default” icon=”plus” anchor=”” class=””]

  • Centros de referência devem ser distribuídos nacionalmente.
  • Eles devem receber financiamento adequado para atender doentes raros (crônicos ao longo da vida, com conhecimento especializado. 
  • Devem oferecer cuidado multiprofissional e orientar o paciente a ‘navegar’ pelo sistema de saúde.
  • Devem obter certificação e conduzir pesquisas sobre doenças raras e sobre tratamento e cuidado dos pacientes.

[/su_spoiler] [su_spoiler title=”Auto-Ajuda” open=”no” style=”default” icon=”plus” anchor=”” class=””]

  • Dada as especificidades dos problemas enfrentados pelos raros, os sistemas de saúde devem ser organizados de modo a incentivar a auto-ajuda.
  • As experiências derivadas dos grupos de auto-ajuda e associações de pacientes devem ser utilizadas no aconselhamento médico (inclusive genético) para aprimorar a prevenção, diagnóstico e tratamento.
  • Cooperação estreita entre associações de pacientes e provedores de cuidados em saúde deve ser estimulada, para melhor contemplar necessidades e interesses dos pacientes.
  • Um ponto fundamental: Associações de pacientes interessadas em contribuir para estas formas de participação devem observar exigências de transparência e independência formuladas pelas entidades de classe e federações da categoria. Em particular, no que se refere a envolvimento com a iniciativa privada.

[/su_spoiler] [su_spoiler title=”Registros de pacientes” open=”no” style=”default” icon=”plus” anchor=”” class=””]

  • No caso das doenças raras, os registros de pacientes (registries) são fundamentais, porque coletam evidências após a aprovação de uma nova droga.
  • A sua criação deve ser estimulada
  • Mas seus operadores devem ser cuidadosamente escolhidos, visando evitar problemas éticos.
  • Devem ser submetidos a controle externo independente
  • Não devem ser administrados por um único médico ou empresa farmacêutica
  • Proteção adequada de dados deve ser estabelecida
  • Todos os dados devem estar abertos a terceiros para pesquisas científicas

[/su_spoiler][su_spoiler title=”Pesquisa” open=”no” style=”default” icon=”plus” anchor=”” class=””]

  • Deve haver incentivos para pesquisa sobre prevenção, tratamento e diagnóstico
  • Pacientes devem participar no desenvolvimento de projetos de pesquisa com financiamento público e nas decisões sobre sua priorização se necessárias.

[/su_spoiler][su_spoiler title=”Informação e treinamento” open=”no” style=”default” icon=”plus” anchor=”” class=””]

  • Estudantes de medicina, médicos residentes e demais profissionais de saúde devem ser alvo de treinamento sobre os desafios da prevenção, tratamento e diagnóstico de doenças raras.
  • Educação e treinamento continuados devem ser oferecidos
  • Estes devem oferecer o estado-da-arte dos estudos acerca para profissionais de saúde em todos os níveis de atenção (primária,secundária, terciária e quaternária)
  • Pacientes devem ter acesso a treinamento ministrado em ambulatórios e centros de reabilitação ou na modalidade “educação a distância”. 
  • Estas medidas devem ser consideradas parte do tratamento global, tendo seus custos rateados entre Saúde e Educação, em todos os níveis de governo.

[/su_spoiler][/su_accordion]

[su_divider text=”Ir para o topo” style=”dashed” divider_color=”#d31f54″ link_color=”#2c1b1b” size=”14″]

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[su_box title=”Para saber mais:” style=”glass” box_color=”#2215d5″ title_color=”#f0ce48″ radius=”7″]

Muito além do SUS (I)! Desafios do cuidado em doenças raras

Muito além do SUS (II): Vulnerabilidade e doenças raras

Muito além do SUS (III): A busca pelo medicamento[/su_box]

Fonte: Os desafios da provisão de cuidados para doenças raras (em inglês)

 

1 comentário em “Muito além do SUS (IV) : Centros de Referência e Recomendações Finais”

  1. Penso que o assunto é muito relevante e pouco cuidado, seja pelo SUS, e/ou autoridades envolvidas(essas porque não têm verbas das autoridades) Os Raros, ou os Erros Inatos do Metabolismo (EIM), deveriam ser divulgados nas mídias para conhecimento da população e de médicos(que nunca ouviram falar) talvez com o engajamento da sociedade, algo seja feito de modo mais efetivo/concreto/urgente!!!!

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