[su_dropcap style=”flat”]H[/su_dropcap]á algumas semanas, iniciamos aqui a publicação de uma série de quatro posts comentando relatório da Comissão de Ética da Alemanha intitulado Os desafios da provisão de cuidados para doenças raras.
A primeira parte desta série tratou da vulnerabilidade médica, social e econômica das pessoas que vivem com doenças raras. Abordou também os aspectos éticos que devem presidir as relações com este que é considerado um dos grupos mais vulneráveis da sociedade em qualquer parte do mundo. A segunda parte desta série abordou as medidas necessárias para reduzir tal vulnerabilidade e que basicamente diziam respeito a:
- Proteção contra tratamento deficiente e inadequado;
- empoderamento dos pacientes.
Agora vamos resumir para você, abaixo, o que o relatório diz sobre medicamentos, tema que desperta grande interesse entre os doentes raros e seus familiares.
Inicialmente, o documento destaca a importância de se somar esforços e atuar em rede para se compensar as desvantagens da baixa incidência das doenças raras, especialmente quando o assunto é a pesquisa científica. Recomenda que medidas compensatórias sejam criadas para que as pessoas com doenças raras se beneficiem tanto dos estudos científicos quanto as pessoas normais. Estas medidas, de acordo com o relatório, poderiam incluir programas de financiamento à pesquisa em doenças raras visando desenvolver prevenção, terapia e diagnósticos baseados em evidências. No Brasil não se tem conhecimento de qualquer programa de incentivo à pesquisa em doenças raras da parte do governo.
No ano de 2000, a União Européia (UE) publicou uma resolução ligada a “produtos medicinais órfãos”, ou “medicamentos órfãos”. Esta expressão refere-se a medicamentos que beneficiam um pequeno número de pacientes e, desta forma, não despertam o interesse da indústria farmacêutica sem que esta receba incentivos econômicos para produzi-los. Assim, quando um medicamento recebe a designação de “órfão”, o fabricante ganha algumas vantagens, tais como isenções fiscais, procedimentos acelerados para a sua aprovação e direito de exclusividade de mercado por 10 anos (nos EUA são sete). Tudo isso está condicionado ao fato de a doença cursar com risco de vida ou ser cronicamente debilitante.
E agora vem um fato interessante. Na Alemanha, o “benefício médico adicional” de um medicamento órfão é considerado comprovado se ele for aprovado pela Agência Européia de Medicamentos. Neste caso, ele é imediatamente disponibilizado para reembolso (no Brasil, o equivalente ao “reembolso” seria a incorporação de determinado medicamento ao SUS).
A designação de “benefício médico adicional” é concedida pelo Federal Joint Comittee (G-Ba) daquele país e serve basicamente para negociações de redução de preço entre pagadores e fabricantes. O G-Ba é a mais alta instância de auto-regulação de médicos, dentistas, hospitais e seguradoras de saúde da Alemanha.
Em que condições a comprovação de benefício médico adicional é exigida naquele país? Somente quando o volume anual bruto de negócios com determinado medicamento órfão excede o limiar de 50 milhões de euros.
A resolução da UE já mencionada resultou na aprovação de cerca de 140 medicamentos órfãos disponíveis para os pacientes no continente europeu entre 2000 e 2019. No Brasil, até o momento, apenas 46 medicamentos órfãos possuem Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) aprovados. Os PCDT são indispensáveis para que os pacientes possam receber o medicamento órfão pelo SUS. No entanto, é preciso reconhecer que as doenças raras passaram a ser objeto de atenção mais sistemática do governo brasileiro com a publicação da Portaria 199, de 2014.
É importante lembrar (e isto é destacado no relatório alemão) que medicamentos órfãos não visam promover a cura do paciente, mas sim para aumentar sua expectativa de vida ou ao menos melhorar sua qualidade de vida, a despeito de todas as desvantagens provocadas por sua condição. [su_highlight]Eu ainda dou risada[/su_highlight], quando me lembro de uma ex-dirigente da CONITEC (já aposentada), que publicamente afirmava que não iria autorizar incorporação de medicamentos órfãos [su_highlight]que não trouxessem a cura[/su_highlight]. Isto está gravado e devidamente documentado! [su_highlight]O relatório destaca exemplos bem-sucedidos de medicamentos órfãos, como aqueles para tratar doença de Pompe, leucemia mielóide crônica e hipertensão pulmonar.[/su_highlight]
Mercado em crescimento
Em 2016, informa o documento, as vendas de medicamentos órfãos na Alemanha representaram cerca de 3,7% dos gastos totais com medicamentos no setor ambulatorial. Mas o relatório observa que, em 2017, os custos da terapia medicamentosa para doentes raros, em alguns casos , aumentaram em cerca de 1,2 milhões de euros anuais. Diz também que em 2017 havia algo em torno de 7 mil a 8 mil doenças raras já identificadas, mas apenas cerca de 1.700 pesquisas em curso para desenvolvimento de tais medicamentos e 140 medicamentos aprovados na UE.
Os autores do relatório manifestaram preocupação com a criação de incentivos que poderiam potencialmente facilitar a aprovação de medicamentos para doenças que não são necessariamente raras. Condenou também a prática de certos fabricantes de fatiar indicações do medicamento, visando criar subtipos de uma determinada doença para obter sua aprovação como medicamento órfão.
Para você ter uma idéia do crescimento deste nicho de mercado (medicamentos órfãos), basta dizer que, em 2019, um em cada quatro medicamentos com um novo princípio ativo lançados na Alemanha pertenciam a este grupo. Isto levou os autores do documento a recomendar medidas visando evitar a testagem inadequada destas substâncias ativas e definir condições bem claras para sua aprovação. A finalidade de tal rigor seria assegurar que os doentes raros recebam medicamentos com a mesma qualidade, eficácia e segurança daqueles destinados a doenças comuns.
É importante lembrar, como faz o relatório, que em muitos países da UE os pacientes não têm acesso a medicamentos órfãos, dado o fato de os sistemas de saúde locais não cobrirem seus custos. Há também o problema, de acordo com o documento, dos preços muitas vezes exorbitantes desta classe de medicamentos. Isto levou a Eurordis, a maior coalizão internacional de associações de doentes raros, a exigir que os preços destes medicamentos fossem reduzidos em 1/3 a 1/5 dos atualmente praticados, até 2025.
Qualidade de vida deve ser o foco
Os autores do relatório também criticaram a adoção de desfechos clínicos secundários para a aprovação desta classe de medicamentos por agências de Avaliações de Tecnologias de Saúde (como a CONITEC, por exemplo). Explico: Os desfechos primários e secundários são entendidos como os resultados que se espera obter com a realização de determinada pesquisa clínica. Desfecho primário é aquele capaz de proporcionar a evidência clínica mais relevante e convincente em relação ao objetivo principal de um estudo. É o principal resultado que é medido, ao final de uma pesquisa para se verificar se um tratamento específico funcionou. O desfecho secundário seria um resultado ou evento clínico monitorado por um estudo clínico, mas de menor importância do que o desfecho primário.
Acontece que os desfechos secundários são muitas vezes apresentados pelos laboratórios a agências de ATS para obter a incorporação deste ou daquele medicamento órfão em determinado sistema público de saúde (no caso do Brasil, p. ex.). Um exemplo de desfecho secundário é o teste da caminhada de seis minutos, muito empregado em estudos clínicos de doenças respiratórias. Volta e meia eles aparecem em relatórios públicos da CONITEC.
O que o relatório alemão argumenta é que desfechos secundários muitas vezes não representam indicadores de melhora da qualidade de vida do paciente e que, por isso, não deveriam servir para a aprovação de determinado medicamento. E pondera:
Embora tais medidas [desfechos secundários] possam atender a exigências formais de comprovação de efeito terapêutico concreto de determinada droga, elas dificilmente resultam em uma melhora notável na saúde ou qualidade de vida do paciente em questão. De uma perspectiva ética e econômica é então importante desenvolver parâmetros apropriados para determinar sua eficácia; estes devem focar mais fortemente em benefícios globais para o paciente.
Mas aqui a gente entra num campo bastante nebuloso e aberto a discussões. Em primeiro lugar, [su_highlight]quem define o que é qualidade de vida de uma pessoa com deficiência, por exemplo? Uma pessoa ‘normal’?[/su_highlight] Sim, infelizmente, na prática é isso que ocorre com alguns indicadores de qualidade de vida. Mas seria justo? Provavelmente não. Em segundo lugar, em estudos clínicos de medicamentos órfãos, por conta da raridade das doenças envolvidas, é muito difícil (ou quase impossível) encontrar um estudo clínico para esta categoria terapêutica que empregue desfechos primários. Isso dá pano pra manga e aqui não teremos tempo de abordar.
O relatório também destaca a importância dos registros (registries) de pacientes para apoiar a pesquisa de medicamentos órfãos. Os registros são bases de dados que ajudam no desenvolvimento de medicamentos pelos fabricantes, ao darem a estes acesso a dados biológicos, clínicos e genéticos de um grande número de pacientes. Desta forma, pode-se compreender melhor a doença, sua história e as necessidades dos pacientes. Isto pode ter efeitos positivos no desenho de estudos clínicos futuros.
Mas também alerta para o risco de conflito de interesses por parte dos operadores do tal registro de pacientes. Não seria recomendável, por exemplo, que tais registros ficassem sob a coordenação de um médico em particular ou de um único fabricante, segundo o documento. O ideal neste caso seriam parcerias público-privadas para administração destes registros.
[su_note]Na próxima semana, publicaremos a última parte desta série de posts sobre a posição da Comissão de Ética da Alemanha acerca das pessoas que vivem com doenças raras e suas necessidades. Abordaremos a importância das redes e centros de referência, bem como as recomendações finais sugeridas por esta Comissão. [/su_note]
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