Cláudio Cordovil

Humira: Caso didático de ganância em medicamentos órfãos

Ao longo de mais de cinco anos, Academia de Pacientes têm promovido a educação não-formal de pacientes e demais interessados sobre os sinuosos caminhos da assistência farmacêutica em doenças raras, com independência e vigor.

De vez em quando, trazemos aqui posts esclarecendo os pacientes e a opinião pública sobre condutas e práticas da indústria farmacêutica que, se não ilegais, são absolutamente imorais. Maracutaias, em bom português.

Este é um assunto que passa longe das associações de pacientes em solo nacional. Não se fala de corda em casa de enforcado. E não convèm às associações criar caso com a teta generosa da indústria, que garante salários generosos a oportunistas e bem-intencionados de todos os quilates.

Hoje vamos tratar de um estratagema adotado pela indústria, visando destruir a concorrência e aumentar seus lucros de forma astronômica: a extensão artificial do prazo das patentes.

Se você ainda não sabe, hoje termina o monopólio que tem rendido ao Humira desde o final de 2016, prazo previsto para o fim de sua patente, um lucro adicional de 116 bilhões de dólares.

Chega finalmente ao mercado um biossimilar, seu concorrente, o Amjevita (Amgen), com a promessa de redução substancial de preços. Na fila, outros nove biossimilares congêneres têm lançamento previsto para breve.

Mas afinal, o que é patente?

De acordo com o Instituto Nacional de Propriedade Industrial,

Patente é um título de propriedade temporária sobre uma invenção ou modelo de utilidade, outorgado pelo Estado aos inventores ou autores ou outras pessoas físicas ou jurídicas detentoras de direitos sobre a criação. Com este direito, o inventor ou o detentor da patente pode impedir terceiros, sem o seu consentimento, de produzir, usar, colocar a venda, vender ou importar produto objeto de sua patente e/ ou processo ou produto obtido diretamente por processo por ele patenteado. Em contrapartida, o inventor se obriga a revelar detalhadamente todo o conteúdo técnico da matéria protegida pela patente.

Sua criação foi bem intencionada: O sistema de patentes farmacêuticas foi criado e é empregado para ajudar as empresas a proteger seu investimento e recuperar os custos gastos na descoberta, desenvolvimento e comercialização de novos medicamentos e, portanto, incentivar futuras pesquisas e inovações neste campo

Pois bem, através de um expediente sagaz (mas não ilegal), a AbbVie, que produz o Humira, tem bloqueado desde 2016, data prevista para a expiração de sua patente, a entrada de concorrentes no mercado e conseguido obter vultosos aumentos de preços.

E como ela faz isso? Através da extensão de patentes. Para o Humira, a AbbVie e suas afiliadas solicitaram 311 patentes, das quais 165 foram concedidas, de acordo com a Iniciativa para Medicamentos, Acesso e Conhecimento, que rastreia patentes de medicamentos. A grande maioria foi arquivada depois que Humira estava no mercado.

Algumas das patentes de Humira cobriam inovações que beneficiavam os pacientes, como uma formulação do medicamento que reduzia a dor das injeções. Mas muitos delas simplesmente esmiuçavam patentes anteriores.

Humira no SUS

Em 2012 e 2018, a Conitec recomendou a incorporação do Humira ao SUS para as seguintes indicações:

* Tratamento da artrite reumatoide
* Na primeira etapa de tratamento após falha da terapia de primeira linha de tratamento da psoríase
* Tratamento da hidradenite supurativa ativa moderada a grave
* Tratamento das uveítes não infecciosas intermediárias, posteriores e pan-uveítes ativas

Veja como funciona o esquema maroto: uma patente inicial do Humira, que expirou em 2016, afirmava que o medicamento poderia tratar uma condição conhecida como espondilite anquilosante, um tipo de artrite que causa inflamação nas articulações, entre outras doenças.

Em 2014, a AbbVie deu entrada em solicitação de outra patente para um método de tratamento de espondilite anquilosante com uma dosagem específica de 40 miligramas de Humira. Assim, o pedido foi aprovado, adicionando 11 anos de proteção de patente além de 2016.

É bem verdade que a AbbVie não inventou essas estratégias marotas de extensão de patentes. Bristol Myers Squibb e AstraZeneca empregaram táticas semelhantes para aumentar seus lucros com medicamentos para o tratamento de câncer, ansiedade e azia. Mas o sucesso da AbbVie na aplicação deste estratagema com Humira se destaca.

Desde sua aprovação em 2002, Humira faturou 208 bilhões de dólares globalmente e em 2021 suas vendas representaram mais de um terço da receita total da AbbVie.

Aos amigos tudo, aos inimigos a lei. Quem, desde 2016, tentou lançar versões biossimilares do Humira, foi processado. Este é o caso da Amgem, que naquele ano estava prestes a obter aprovação regulatória. Foi acionada judicialmente pela AbbVie sob a alegação de que estava violando 10 das patentes de Humira. A Amgen esperneou mas concordou em só começar a vender seu medicamento em 2023.

Acordos semelhantes foram firmados pela Abbvie no passado com nove outros fabricantes que buscavam lançar suas próprias versões do Humira e todos eles concordaram em adiar sua entrada no mercado até este ano.


Com informações do New York Times

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Cláudio Cordovil Pesquisador em Saúde Pública
Jornalista profissional. Servidor Público. Pesquisador em Saúde Pública (ENSP/Fiocruz). Especializado em Doenças Raras, Saúde Pública e Farmacoeconomia . Mestre e Doutor em Comunicação e Cultura (Eco/UFRJ). Prêmio José Reis de Jornalismo Científico concedido pelo CNPq.

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