A pequena Pamela Feijão Mourão, hoje com 10 anos e moradora de Itapajé, no Ceará, nasceu aparentemente saudável. Mas, 25 dias após o parto, seus pais foram surpreendidos com a notícia de que o seu teste do pezinho, um exame que faz parte da triagem neonatal, apresentou uma alteração.
A menina, então, foi encaminhada para o Hospital Albert Sabin, em Fortaleza, onde passou por exames mais aprofundados e recebeu o diagnóstico de fenilcetonúria, um defeito no metabolismo que leva ao acúmulo do aminoácido fenilalanina no corpo, sobretudo no cérebro, e precisa ser tratado nos primeiros meses de vida para não gerar atrasos no desenvolvimento neuropsicomotor e deficiência mental, entre outras consequências.
No caso de Pamela, a terapia, que consiste em mudanças na dieta e uso de medicamento, e deve ser seguida para sempre, foi iniciada quando ela tinha quase quatro meses. “Se não fosse o teste do pezinho, não teríamos descoberto precocemente a doença e feito o tratamento. Graças a ele, minha filha nunca apresentou nenhuma dificuldade e nem ficou com sequelas. Ela é uma criança perfeita e superesperta”, comemora a mãe Raiara Rodrigues Feijão, 28.
O que é a triagem neonatal
A triagem neonatal, pela qual passou Pamela —e que é obrigatória para todos os bebês que nascem no Brasil—, foi iniciada por aqui na década de 1980 e institucionalizada em 2001, com a criação do PNTN (Programa Nacional de Triagem Neonatal).
Ela engloba um conjunto de exames cujo objetivo é identificar precocemente enfermidades graves que não têm manifestações aparentes nos primeiros dias ou semanas de vida e que podem comprometer seriamente o desenvolvimento ou até levar a morte.
“Ao fazermos esse rastreamento logo após o parto, conseguimos constatar possíveis doenças e alterações em tempo oportuno para iniciarmos o tratamento e, assim, eliminarmos as sequelas e as complicações inerentes, reduzirmos a taxa de mortalidade e melhorarmos a qualidade de vida daquela criança”, aponta Tania Bachega, presidente da SBTEIM (Sociedade Brasileira de Triagem Neonatal e Erros Inatos do Metabolismo) e professora associada da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).
O principal exame da triagem neonatal é o teste do pezinho, mas há outros complementares: teste da orelhinha, teste do olhinho, teste do coraçãozinho e teste da linguinha. Entenda melhor, a seguir, como são esses 5 exames, realizados gratuitamente pelo SUS (Sistema Único de Saúde).
- Teste do pezinho: consiste na coleta de uma amostra de sangue, retirada do calcanhar do bebê, idealmente entre o 3º e o 5º dias de vida. Por meio dele, são identificadas 6 enfermidades. No ano passado, o governo sancionou uma lei para a ampliação do teste, que passará a contemplar 53 doenças –leia mais na sequência.
- Teste do coraçãozinho (ou oximetria de pulso): com o uso de um aparelho chamado oxímetro, é medida a oxigenação do sangue dos recém-nascidos. Essa avaliação deve acontecer entre 24 e 48 horas de vida e sua finalidade é identificar alguma possível cardiopatia congênita grave.
- Teste da orelhinha: o exame, que consiste na colocação de uma espécie de fone acoplado a um computador na orelha do bebê, detecta a existência de problemas de audição. Rápido e indolor, ele também precisa ser realizado entre 24 e 48 horas de vida.
- Teste do olhinho: indica alterações que causam obstrução no eixo visual e podem comprometer a visão, como catarata e glaucoma congênitos. É feito com o uso de um aparelho que emite um feixe de luz diretamente no olho da criança, e o período ideal de realização é na primeira semana de vida.
- Teste da linguinha: avalia o tamanho e a espessura do frênulo lingual (membrana que liga a parte inferior da língua à base da boca) a fim de identificar limitações dos movimentos da língua que possam comprometer funções como sugar, deglutir, mastigar e falar.
É importante salientar que esses exames têm a função de apenas fazer um rastreamento dos bebês nascidos vivos, e não efetivamente diagnosticá-los.
“Muita gente entende que a triagem é um método de diagnóstico, e não é. Como a própria palavra indica, ela vai triar uma população, determinando quem são as pessoas de alto risco. Esse grupo, então, será encaminhado para um serviço de diagnóstico, onde realizará mais exames para confirmação do quadro”, explica Salmo Raskin, presidente do Departamento Científico de Genética da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria) e diretor do laboratório Genetika, de Curitiba, no Paraná.
Teste do pezinho passará por mudanças
Como adiantamos, o teste do pezinho, até o momento, identifica 6 enfermidades (metabólicas, genéticas, enzimáticas e endocrinológicas). São elas: fenilcetonúria, hipotireoidismo congênito, hemoglobinopatias, fibrose cística, hiperplasia adrenal congênita e deficiência de biotinidase.
Nos serviços privados de saúde já é realizado há alguns anos o teste do pezinho expandido, que, além dessas patologias, contempla diversas outras. E este exame chegará também aos serviços púbicos, devido à aprovação da lei nº 14.154, em maio de 2021. Porém, a sua implementação se dará forma escalonada, e caberá ao Ministério da Saúde estabelecer os prazos —só que nenhum foi definido até agora.
Na primeira etapa, estão previstas a adição das doenças relacionadas ao excesso de fenilalanina, toxoplasmose congênita e outras hiperfenilalaninemias. Na segunda, serão incluídas as galactosemias, as aminoacidopatias, os distúrbios do ciclo de ureia e os distúrbios da betaoxidação de ácidos graxos. Na terceira, entram as doenças lisossômicas de depósito, como as mucopolissacaridoses; na quarta, as imunodeficiências primárias e, na quinta e última, a AME (atrofia medular espinhal).
“A ampliação do teste, para essas mais de 50 doenças, é um processo de alta complexidade. Não só porque envolve a compra de equipamentos de alto custo pelo SUS, mas também pela necessidade de se treinar profissionais de laboratório para o desenvolvimento das novas metodologias, treinar e ter à disposição médicos pediatras e geneticistas em todos os estados e incorporar as medicações que os pacientes precisarão receber, afinal, de nada adianta diagnosticar e não oferecer tratamento e acompanhamento”, pontua Bachega.
A médica observa ainda que a maioria dos estados do Sul, do Sudeste e do Centro-Oeste já possuem triagens bem organizadas e, portanto, terão condições de ampliá-la mais rapidamente —alguns locais, inclusive, já realizam o teste expandido mesmo antes de a nova lei ser sancionada, como Brasília.
Por outro lado, grande parte do Norte e do Nordeste enfrenta problemas para promover até mesmo a avaliação simplificada. “Em partes dessas regiões, o índice de bebês submetidos à triagem neonatal fica abaixo de 80%. A questão é que essas localidades enfrentam dificuldades de transporte e de licitação para a compra dos kits diagnósticos e, sobretudo, falta de profissionais especializados”, complementa a presidente da SBTEIM.
Para Erlane Ribeiro, neonatologista do Hospital Geral César Calls e do Hospital Geral de Fortaleza, geneticista do Hospital Infantil Albert Sabin do Governo do Estado do Ceará, a grande questão é que toda criança deve ter a oportunidade de receber um diagnóstico precoce, para que possa ser tratada o quanto antes.
“Essa possibilidade não pode ser tirada de ninguém”, afirma a médica, que também é professora de genética médica da Faculdade de Medicina Unichristus e diretora do IPEES (Instituto de Pesquisa, Ensino e Extensão em Ciências da Saúde). “As doenças contempladas no teste do pezinho têm tratamento, e, quando ele é feito precocemente, melhora a qualidade de vida do paciente, previne sequelas, em especial as neurológicas, e suprime as características clínicas da enfermidade.”
Inclusão da AME no novo exame expandido
Para a inclusão das novas doenças no teste do pezinho expandido realizado pelo SUS, alguns critérios foram levados em consideração. A AME, como já mostramos, foi uma das que se enquadrou nos requisitos. Essa doença rara, neuromuscular e genética, causa a morte dos neurônios motores inferiores e atinge um ou dois casos a cada 100 mil pessoas.
Ela é dividida em 5 tipos (0 a 4), e, independentemente de qual for, o tempo é crucial para evitar mortes e garantir uma melhor qualidade de vida aos pacientes.
“A criança com AME, quando tratada nos primeiros meses, antes mesmo do início dos sintomas, se não tiver uma vida totalmente normal, vai ter o mais próximo possível do normal. Agora, se o tratamento começar depois do aparecimento dos sintomas, muita coisa já terá sido perdida. Por isso, a sua implementação no teste do pezinho é fundamental”, indica Diovana Loriato, diretora do Iname (Instituto Nacional da Atrofia Muscular Espinhal) e mãe do Davi, de 10 anos, que tem AME tipo 1.
Ela pondera ainda que, com a doença fazendo parte da triagem neonatal, isso vai evitar o sofrimento de muitas famílias durante meses —e até anos— em busca de um diagnóstico. “A jornada do paciente é muito complexa. No caso do Davi, ele começou a ter manifestação clínica a partir dos 4 meses. Precisei consultar vários médicos até finalmente descobrir o que ele tinha. Esse é um processo muito difícil e doloroso, mas que com a nova lei será amenizado. Só precisamos que ela aconteça logo, e não daqui a 20 anos.”
Rede privada oferece exames extras
Para as famílias que têm condições de pagar por exames mais abrangentes, os serviços privados de saúde, além de já realizarem amplamente o teste do pezinho expandido, oferecem outros exames de triagem, alguns feitos após o nascimento e outros ainda na barriga da mãe.
No primeiro grupo, destaque para o teste da bochechinha, que analisa os genes da criança por meio da coleta das células bucais e é capaz de detectar cerca de 300 doenças raras, graves e tratáveis, relacionadas a neoplasias, problemas pulmonares, renais, hepáticos, gastrointestinais, hematológicos, imunológicos e endócrinos e erros inatos do metabolismo.
O kit para a realização deste exame pode, inclusive, ser comprado pela internet e feito pelos próprios pais. Mas, apesar da praticidade, Bachega não recomenda que seja feito dessa forma. “Isso pode ser muito perigoso porque não há um médico assessorando sobre os resultados.”
Em relação às avaliações disponíveis para o período do pré-natal, a especialista também tem ressalvas: “Só se faz teste genético em bebê com suspeita diagnóstica identificada no ultrassom ou a depender do histórico familiar dos pais. Isso não é algo que pode ser empregado de forma geral e indiscriminada, em toda e qualquer gestação”.
Alguns dos exames disponíveis para essa fase são os não invasivos NIPT e o NIPT Ampliado. Eles são feitos a partir de uma amostra de sangue da mãe —que tem a presença de DNA fetal circulante (ou livre).
No simples, dentre as síndromes diagnosticadas estão Down, Edwards, Patau, Klinefelter e Turner. Já no completo, entram na lista aneuploidias em todos os outros cromossomos e síndromes genéticas mais raras, associadas a microdeleções subcromossômicas, como a deleção 1p36, a de Wolf-Hirschhorn, a de Cri-Du-Chat, a de Angelman e a de DiGeorge.
O que esperar para o futuro da triagem neonatal
Levando em conta que existem catalogadas cerca de 7.000 doenças raras e graves, é natural que se criem expectativas para a inclusão de mais delas na triagem neonatal. Mas isso não deverá ocorrer tão cedo, até porque, primeiro, precisam ser iniciados os testes de todas as patologias previstas na nova lei —e os prazos seguem incertos.
Ainda assim, os especialistas consultados por VivaBem acreditam que, em alguns anos, novidades surgirão nesta área. Uma delas, segundo Raskin, é a popularização do aconselhamento genético.
“Pela complexidade das doenças detectadas no teste do pezinho, é essencial que os pais recebam orientação, inclusive para saberem qual o risco de terem outro filho com o mesmo problema. Todas as famílias deveriam ter o direito de receber esse tipo de informação. Claro que o processo não é simples de ser implementado, ainda mais em um país continental como o Brasil, mas tenho esperança de que isso aconteça em algum momento”, relata.
Outra aposta, em um futuro um pouco mais distante, é a introdução da triagem neonatal molecular no lugar da bioquímica empregada atualmente. Bachega, da SBTEIM, conta que Reino Unido e Estados Unidos já têm projetos de pesquisa em andamento para analisar a performance e a eficácia dessa metodologia. “Mas a substituição só vai mesmo acontecer quando tivermos conhecimento científico suficiente.”
Beny Schmidt, médico patologista, chefe do Laboratório de Patologia Neuromuscular da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e fundador da clínica de medicina preventiva e doenças neuromusculares almaa Healing Group, complementa que a triagem neonatal, através do teste do pezinho, abre um leque imenso de possibilidades para a medicina moderna.
“Com esse exame, conseguimos obter o genoma humano. No futuro, teremos mapeado o genoma de todos os seres humanos, e aí poderemos desenvolver uma medicina específica para cada um e promover o surgimento de novas terapêuticas mais personalizadas”, finaliza.
Matéria originalmente publicada no Viva Bem UOL , de autoria de Renata Turbiani, em 11/07/2022