Cláudio Cordovil

Elevidys, o Fantástico e o autoengano

A edição do Fantástico de ontem (7/7) trouxe uma matéria sensacionalista a respeito de um tratamento administrado por infusão intravenosa e que custa aproximadamente 17 milhões de reais por paciente. O medicamento é envolto em graves controvèrsias, naturalmente não mencionadas no referido programa televisivo.

Único medicamento disponível para o tratamento da distrofia muscular de Duchenne até o momento, Elevidys teve sua autorização para comercialização pela Food and Drug Administration dos EUA concedida de forma no mínimo suspeita.

Curiosamente, a matéria tendenciosa do Fantástico náo ouviu qualquer médico prescritor de Elevidys sobre evidências de eficácia do medicamento. E nem poderia, porque os efeitos (ou ausência de efeitos) deste medicamento a médio e longo prazos são totalmente desconhecidos. Isso para mim não é jornalismo, mas sensacionalismo demagógico. Imprensa marrom.

Matérias como esta do Fantástico e decisões açodadas desta natureza de parte de agências reguladoras despertam preocupações de parte de setores esclarecidos da opinião pública de que executivos e associações de pacientes, que podem ter ligações com a indústria, tornem-se influentes demais sobre os principais tomadores de decisão, permitindo que tratamentos que podem não ser eficazes ou seguros entrem no mercado.

A bem da verdade, a matéria do Fantástico menciona o custo exorbitante de um medicamento cujas promessas terapêuticas ATÉ O MOMENTO se revelam infundadas. Mas a mim soou com uma nota de pé de página em uma matéria melodramática de quinta categoria que busca causar comoção pública.

Está aí mais um abacaxi para a ANVISA e a Conitec descascarem.

Razões para preocupação

Em junho passado, a FDA aprovou o tratamento de terapia genética da Sarepta Therapeutics para uso em pacientes com quatro anos ou mais com distrofia muscular de Duchenne. No entanto, a decisão ignorou a recomendação de vários membros da equipe da agência, que afirmaram haver “incerteza significativa quanto aos benefícios do tratamento.”

A decisão monocrática e arriscada sobre a aprovação foi iniciativa unilateral e individual do todo poderoso diretor do Centro de Avaliação e Pesquisa Biológica da FDA, Peter Marks.

A distrofia muscular de Duchenne é uma condição que causa fraqueza muscular progressiva e pode levar os pacientes a não conseguirem andar quando chegam à adolescência. Atualmente, não há cura para a condição e os tratamentos, que geralmente consistem em medicamentos esteroides e fisioterapia, são limitados.

No ano passado, a FDA já havia concedido aprovação acelerada para a terapia genética da Sarepta, para tratar a distrofia muscular de Duchenne em crianças de quatro e cinco anos com uma determinada mutação confirmada em um gene chamado DMD.

Em junho deste ano, a FDA anunciou que deu aprovação tradicional para o Elevidys para pacientes ambulatórios (com capacidade de andar) com quatro anos ou mais com uma mutação confirmada no gene DMD.

Em outubro do ano passado, a Sarepta divulgou os resultados de um ensaio confirmatório mostrando que o tratamento não atingira seu objetivo principal, que era uma medida de quão bem os pacientes poderiam se mover. No entanto, os executivos da Sarepta disseram que o ensaio conseguiu atingir objetivos secundários e exploratórios, o que, segundo eles, mostrou que o mecanismo de ação do tratamento funcionou e poderia retardar a progressão da doença.

Mas a equipe de revisão clínica e de farmacologia clínica da FDA discordou da avaliação da Sarepta, segundo informou a prestigiosa STAT+. De acordo com a equipe de revisão, o ensaio não confirmou o benefício do tratamento para pacientes de quatro e cinco anos, e a empresa “não forneceu dados satisfatórios para apoiar as alegações de eficácia para todas as idades e para pacientes não ambulatórios.”

Apesar da conclusão da equipe de revisão, o autocrata Marks disse que “os dados disponíveis são convincentes, incluindo o benefício positivo mostrado nos endpoints secundários e as evidências exploratórias” dos ensaios clínicos. Ele também observou que há uma falta de tratamentos alternativos para a distrofia muscular de Duchenne. Como se isso fosse justificativa para aprovar uma terapia milionária com resultados ainda duvidosos.

Dois dos principais assessores de Marks também se opuseram à sua decisão unilateral. Em uma carta a Marks, Lola Fashoyin-Aje, diretora do Escritório de Avaliação Clínica, e Nicole Verdun, diretora do superescritório de Produtos Terapêuticos, disseram que o Elevidys falhou em dois ensaios consecutivos, controlados por placebo, em crianças de quatro a sete anos.

Fashoyin-Aje e Verdun também observaram que não havia dados que mostrassem que a função muscular dos pacientes melhorara após receber mais microdistrofina e que a Sarepta incluiu apenas dados de um punhado de pacientes que usavam cadeiras de rodas.

Embora Fashoyin-Aje e Verdun tenham dito que o Elevidys “pode ser eficaz” para alguns pacientes, fica difícil determinar quais pacientes se beneficiariam. Fashoyin-Aje e Verdun disseram que teriam recomendado que a Sarepta realizasse outro ensaio clínico, mas que isso agora era “inviável” devido à decisão de Marks de aprovar o medicamento manu militari, ou, em bom português, autoritariamente.

Em um comunicado à imprensa, Peter Marks, diretor do Centro de Avaliação e Pesquisa Biológica da FDA, disse que a aprovação atendeu a “uma necessidade médica urgente e não atendida e é um avanço importante no tratamento da distrofia muscular de Duchenne, uma condição devastadora com opções de tratamento limitadas, que leva a uma deterioração progressiva da saúde de um indivíduo ao longo do tempo.”

“A expansão é um momento definidor para a comunidade de Duchenne,” disse Doug Ingram, CEO da Sarepta. “Hoje também é uma ocasião histórica para a promessa da terapia genética e uma vitória para a ciência.”

Não é a primeira vez que Marks contraria sua equipe em uma decisão relacionada ao Elevidys. No ano passado, Marks decidiu unilateralmente dar ao Elevidys sua aprovação acelerada inicial para crianças de quatro e cinco anos. Outros altos funcionários da FDA também contrariaram suas equipes em outras decisões sobre medicamentos, incluindo o medicamento para Alzheimer da Biogen, Aduhelm, em 2021.

A ex-cientista chefe da FDA, a brasileira Luciana Borio, soltou o verbo: “Eu não sei o que dizer. Peter Marks ridiculariza o raciocínio científico e os padrões de aprovação que serviram bem aos pacientes durante décadas” E acrescentou: “Esse tipo de ação também promove a crescente desconfiança em instituições científicas como a FDA.”

Naturalmente, os pais de pacientes com a condição também elogiaram a decisão da FDA. Se a eles fosse oferecido snake oil (literalmente, óleo de cobra) para tratar seus filhos, eles não hesitariam em experimentar. É compreensível e humano, demasiado humano.

A expressão “snake oil” refere-se a um produto ou remédio que é vendido como uma cura milagrosa, mas que na verdade é ineficaz ou até mesmo uma fraude.

“Marks demonstrou que é capaz do tipo de flexibilidade regulatória necessária para analisar adequadamente os tratamentos em uma condição como a Duchenne,” disse Jennifer Handt, cujo filho Charlie, de 6 anos, recebeu Elevidys em um ensaio clínico. “Este novo dia para a medicina em doenças raras exige um novo pensamento e, às vezes, uma ação ousada – incluindo contrariar a equipe da divisão.”

O autoengano

Se o voluntarioso Peter Marks tem suas razões ainda que discutíveis para monocraticamente decidir pela aprovação de um medicamento controverso, o mesmo não se pode dizer das famílias de pacientes com distrofia muscular de Duchenne neste caso (ou pelo menos algumas delas).

O economista Eduardo Gianetti da Fonseca publicou um livro intitulado Autoengano, onde desvenda as origens do fenômeno.

Para o autor, o autoengano é um mecanismo psicológico pelo qual os indivíduos ignoram a verdade para manter uma percepção mais agradável de si mesmos ou da realidade. Trata-se de uma estratégia de defesa mental que pode ser tanto consciente quanto inconsciente.

O autor explora os mecanismos psicológicos que facilitam o autoengano, como a racionalização, a dissonância cognitiva e o viés de confirmação.

Ele também discute como as pessoas justificam suas crenças e ações autoenganosas para si mesmas e para os outros.

Gianetti da Fonseca discute as consequências do autoengano, que podem variar desde danos pessoais e interpessoais até falhas institucionais e sociais.

A se alastrar o autoengano suscitado por Elevidys, com os dados disponíveis até o momento, o governo comprará gato por lebre pela bagatela de 17 milhões de reais por paciente. Aos familiares sempre restará a via da judicialização para a aquisição de snake oil high tech (com as evidências disponíveis até o momento). Eu, pelo menos, nutro a ilusão de que este post chegará a quem tem poder de decidir.

O precedente aberto por Jeff Marks é perigosíssimo e a matéria sensacionalista do Fantástico poderá causar danos importantes ao já combalido Erário público.

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Cláudio Cordovil Pesquisador em Saúde Pública
Jornalista profissional. Servidor Público. Pesquisador em Saúde Pública (ENSP/Fiocruz). Especializado em Doenças Raras, Saúde Pública e Farmacoeconomia . Mestre e Doutor em Comunicação e Cultura (Eco/UFRJ). Prêmio José Reis de Jornalismo Científico concedido pelo CNPq.

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