Cláudio Cordovil

Quando a Conitec será “NICE” (I) ?

ATS, Conitec, Farmacoeconomia

Você pode não acreditar, dada toda a sinistrose que a pandemia trouxe para nossas vidas, mas tudo indica que o ano de 2021 será muito interessante para as pessoas que vivem com doenças raras.

Ao menos no Reino Unido. Com alguma sorte, também no Brasil e em outras partes do mundo.

Isto porque o National Institute for Healthcare and Clinical Excellence (NICE), da Inglaterra e do País de Gales, está realizando uma profunda modificação de seus métodos de Avaliação de Tecnologias em Saúde (a maior de todas ao longo de sua história), visando trazer mais justiça e equidade a suas recomendações de incorporação destas aos sistema de saúde locais.

E os maiores beneficiários diretos destas mudanças serão os doentes raros, e, claro, toda a sociedade. Continue com a gente que mais abaixo você vai entender por quê.

O NICE, guardadas as devidas proporções, é como se fosse a Conitec inglesa. É farol a orientar esta e outras agências de ATS no mundo inteiro, inclusive a brasileira. Suas metodologias e abordagens, em maior ou menor grau, inspiram as suas congêneres em todo o planeta.

Sim, o NICE é farol e inspiração para suas congêneres no mundo inteiro, mas ainda assim sofria constantes críticas sobre os métodos empregados para avaliar a conveniência de se introduzir novas terapias ao sistema de saúde inglês. Pudera, nem Jesus Cristo esteve imune a críticas!

O contexto das mudanças

Um empurrãozinho para seu extreme makeover , ora em curso, também foi dado pelo surgimento, no horizonte, de terapias médicas avançadas, como a terapia gênica, as terapias celulares e os tecidos celulares engenheirados. Isto obrigou o NICE a começar a discutir métodos mais adequados para avaliar tais tecnologias. Vinhos novos em odres novos!

Outra motivação subjacente para o banho de loja foi a saída do Reino Unido da União Européia (Brexit), marcada para se concretizar em menos de um mês. Com o fechamento das fronteiras por conta do Brexit, os produtos ingleses devem ficar mais caros e, consequentemente, menos competitivos nos países europeus, que são seus principais parceiros comerciais. O Fundo Monetário Internacional (FMI) já previu uma redução de até 9,5% no PIB britânico. Aqui é importante lembrar que desde os tempos de Tony Blair, como primeiro-ministro do Reino Unido (1997-2007), aquela parte do mundo resolveu apostar todas as fichas na biotecnologia como ponta-de-lança para turbinar sua economia no século 21.

Diante do cenário pós-Brexit que se desenha, é evidente que o NICE precisa criar um ambiente mais favorável para os negócios da indústria farmacêutica local e do setor da biomedicina (ponta-de-lança, lembra?). Este pode também ter sido um fator a aconselhar uma maior flexibilização dos critérios metodológicos do NICE para incorporação (reembolso) de tecnologias de saúde ao sistema de saúde britânico. Mas é importante que se diga que toda esta flexibilização está sendo conduzida com muito rigor científico, “baseado em evidências”. O NICE não brinca com estas coisas. Não se trata apenas de manobra de conveniência (geo)política.

Como chegamos até aqui?

Nossa história começa em julho de 2019, quando o board do NICE anunciou uma ampla revisão de seus métodos (ver cronograma abaixo). Na ocasião, ninguém resumiu melhor a motivação da empreitada do que Andrew Dillon, seu administrador (CEO)  naquele momento.

“O NICE está realizando esta revisão em um momento de mudança sem precedentes no sistema de saúde, onde desenvolvimentos como medicina personalizada, digitalização da saúde e uso de terapia celular e genética significam que os produtos estão se tornando cada vez mais difíceis de avaliar”.

[pdf-embedder url=”http://academiadepacientes.com.br/wp-content/uploads/2020/12/Cronograma-nice-convertido.pdf” title=”Cronograma nice-convertido”]

O cronograma acima está distribuído em duas páginas. Para vê-las em detalhes, clique nas setas no canto inferior direito. Outros comandos no arquivo acima lhe permitem ampliar a página ou mesmo baixar o cronograma. Experimente!

No início de novembro deste ano o NICE divulgou publicamente os resultados de sua revisão, que deve permanecer em Consulta Pública até o dia 18 de dezembro.

Trata-se de um projeto ambicioso, que ainda contará com uma segunda rodada de consultas públicas e que tem previsão para estar totalmente concluído em outubro de 2021.

São nada menos do que 56 propostas de mudanças em cinco áreas de interesse que deverão alcançar os quatro programas de ATS do NICE. São eles:

  • Avaliações de Tecnologia;
  • Tecnologias Médicas;
  • Diagnóstico; e
  • Tecnologias Altamente Especializadas (HST).

Este último é o programa de ATS exclusivamente dedicado a medicamentos órfãos e doenças raras.

Aqui um detalhe importante. Desde tempos imemoriais o NICE de algum modo reconhece que não se deve avaliar tecnologias em saúde para doenças raras com os mesmos critérios empregados para avaliar tecnologias para doenças frequentes. Razão pela qual criou um programa especialmente para isso (Tecnologias Altamente Especializadas).

Não é o que acontece com a Conitec. Esta não possui esta separação e, até prova em contrário, emprega os mesmos critérios para deliberar sobre medicamentos para raras e frequentes com notável impacto negativo em termos de equidade no tratamento das doenças raras.

A equidade é um dos princípios sacrossantos do Sistema Único de Saúde, que em tese deveriam norteá-lo. SQN (Só que não).

Após todo este processo, o NICE espera lançar um manual único para todos os seus quatro programas de ATS acima listados. Segundo um de seus executivos, espera-se que ele:

“Realmente apóie nossa ambição de fornecer acesso mais rápido do paciente a novas e promissoras tecnologias de saúde, promova um melhor acesso ao mercado e simplifique o processo de avaliação de tecnologia de saúde para todas as partes interessadas [stakeholders]”.

Benefícios à vista para os raros (só do Reino Unido?)

O tema é vasto; a reforma proposta, profunda.

Não temos condições de destrinchar aqui todo o documento que está em consulta pública, por limitações de espaço. Mas vamos retornar ao tema nos próximos posts, numa linguagem que você seja capaz de entender. Este é meu grande desafio.

Mas, o que vem por aí?

Basicamente, no que se refere aos doentes raros, quais os benefícios destas mudanças propostas? Se tivesse que definir em uma palavra apenas, eu diria “flexibilização”.

Para você entender melhor. Você sabe por que muitas vezes aquele medicamento tão ansiado por você teve sua recomendação ao SUS negada pela Conitec?

Na grande maioria dos casos por uma falta de compreensão, boa vontade, por conveniência política  ou incompetência daquele órgão (e por extensão de seus técnicos) para entender que as ATS convencionais, tais como as praticadas pela Conitec, são TOTALMENTE inadequadas para se decidir sobre doenças raras e seus medicamentos.

Este é um achado robusto da literatura especializada. Não há qualquer dúvida sobre isso. Ignorar tal fato é estimular a judicialização da Saúde, coisa que o governo jura de pés juntos que não quer. Há controvérsias.

Nenhum especialista honesto em economia da saúde iria negar essa verdade elementar apontada pela literatura especializada: a inadequação da aplicação de ATS convencionais em doenças raras.

É curioso que a Conitec (que tanto gosta de falar que é baseada em evidências) tenha pulado estas páginas do manual sobre como avaliar com alguma honestidade medicamentos e terapias para doenças raras.

E o que acontece quando a Conitec insiste em não contemplar em suas decisões as especificidades e particularidades ensejadas pelas doenças raras?

Na prática seu medicamento não será incorporado ao SUS.

Aí você pode perguntar: Mas como ainda assim temos alguns (poucos) medicamentos para raras incorporados ao SUS? Das duas uma: ou o medicamento tem uma razão de custo-efetividade atraente (o que é muito raro em se tratando de medicamentos órfãos) ou por questões de conveniência política (pressões de associações, da indústria, da mídia, etc.). E eventualmente outras que nem convém mencionar.

Neste momento, o NICE, com esta reforma profunda de seus procedimentos faz seu mea culpa com relação às doenças raras.

Outra maneira de ver o “problema Conitec” é uma baixa tolerância notória ao fator “incerteza” em sua tomada de decisões.

“Baseados em evidências” de forma bastante ortodoxa, natural que tenham horror à incerteza.

Mas sabe de uma coisa? Incertezas são o que há, quando se pensa em medicamentos inovadores para doenças raras! Incertezas também já batem à porta com relação a terapias gênicas, terapias celulares e congêneres.

E como se administra a incerteza, quando se tem honestidade de propósito e preocupação de não se deixar ninguém para trás como determina a Agenda 2030? Desenvolvendo acordos de compartilhamento de risco, por exemplo; aqueles que acabam de ser rejeitados com o encerramento abrupto de um acordo desta natureza que no Brasil estava sendo conduzido para nusinersena, tratamento para Atrofia Muscular Espinhal. Avante, Sucupira!

Vejamos o que diz o NICE no comentário recente que fez ao documento que ora está em consulta pública:

“Há circunstâncias em que precisamos aceitar esse risco [da incerteza]. É justo que aceitemos uma quantidade de risco e (…) doenças raras é um exemplo de onde é certo que devemos ser capazes de aceitar uma quantidade de risco, porque sabemos que parte da incerteza associada às tecnologias de saúde para doenças raras é inevitável. Isto porque as doenças raras afetam um pequeno número de pessoas. É difícil, senão impossível, fazer um grande ensaio clínico se não houver uma grande população, então, às vezes é inevitável. Isto significa que devemos ser capazes de apoiar adequadamente essas tecnologias de saúde para alcançar os pacientes que precisam delas, sem prejuízo de uma avaliação robusta, justa e transparente das mesmas”.

E vem do NICE a definição de “flexibilidade” que, ao que tudo indica, deverá pautar suas decisões envolvendo terapias para doenças raras após outubro do ano que vem.

“Isso pode muito bem significar que, para tecnologias específicas, circunstâncias específicas, os comitês estão dispostos a aceitar um grau de risco maior do que fariam de outra forma, talvez por uma circunstância diferente. Acho que é isso que realmente queremos dizer com “flexibilidade”. É a capacidade de aceitar uma quantidade maior de riscos e de incertezas em circunstâncias específicas”.

Ponto que não passou despercebido do NICE no documento que disponibilizou recentemente para Consulta Pública é a questão da igualdade em saúde e os direitos humanos.

Entre as considerações expostas no documento apontadas para sua elaboração estão “os deveres éticos e legais do NICE para com a igualdade e os direitos humanos”. E prossegue o documento: “isso inclui a necessidade crucial de apoiar a justiça e a equidade, eliminar a discriminação ilegal e promover a igualdade”.

Voltaremos ao tema nos próximos posts. Tudo indica que este será o assunto do ano em 2021. E nós estaremos acompanhando.

Diante de tudo isso resta-nos perguntar:

Quando a Conitec será NICE?

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Cláudio Cordovil Pesquisador em Saúde Pública
Jornalista profissional. Servidor Público. Pesquisador em Saúde Pública (ENSP/Fiocruz). Especializado em Doenças Raras, Saúde Pública e Farmacoeconomia . Mestre e Doutor em Comunicação e Cultura (Eco/UFRJ). Prêmio José Reis de Jornalismo Científico concedido pelo CNPq.

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