A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) acaba de lançar seu Manual de governança & gestão de conflitos de interesses. Já não era sem tempo. Custa-se a acreditar que foram necessários 14 anos desde a sua fundação para que alguém cogitasse a elaboração de instrumento tão fundamental em área que envolve interesses poderosos, especialmente quando se refere a medicamentos de alto custo, frequentemente associados ao tratamento de doenças raras. Os riscos de captura do Estado pela indústria farmacêutica em fóruns desta natureza são reais e podemos só supor o que se sucedeu em termos de conflitos de interesse na instituição nos 14 anos passados sem tal dispositivo. (Continua após o PDF)
O documento tem a pretensão de ser a nova bússola ética referente a decisões de incorporação de tecnologias ao SUS , nelas conceitualmente incluídos os medicamentos. No contexto em que estão em jogo bilhões de reais em medicamentos, dispositivos e protocolos clínicos, o manual tem a intenção de orientar as Avaliações de Tecnologias em Saúde, buscando ser transparentes, fundamentadas em evidências e livre de interferências indevidas.
Diante disso, só nos resta perguntar:
O manual entrega um escudo robusto contra conflitos de interesses ou ainda deixa brechas que podem fragilizar a confiança da sociedade nas decisões da Conitec?
É o que discutiremos a seguir:
Integridade em disputa no SUS
O manual nasce amparado pelo Decreto nº 9.203/2017, que obriga órgãos da administração pública federal a instituir programas de integridade voltados à prevenção, detecção e punição de corrupção, fraudes e desvios éticos. Também dialoga com a Portaria CGU nº 57/2019, que orienta a estruturação desses programas, e com o movimento recente do próprio Ministério da Saúde de fortalecer a governança em seus processos decisórios.
Em sua apresentação, o documento liga integridade a “conduta reta, ética, justa, honesta, proba”, afirmando que a Conitec busca assegurar decisões custo-efetivas, transparentes e livres de conflitos de interesses em todas as etapas da ATS. Sua aplicabilidade alcança membros dos comitês, servidores, colaboradores, estagiários, núcleos de ATS (NATS), convidados e usuários do SUS. Fica claro que ninguém que influencia as recomendações está fora do radar.
Pontos positivos
Um dos principais méritos do manual é reconhecer que conflito de interesses não representa necessariamente má-fé, mas um risco que precisa ser identificado e administrado com rigor. O texto reconhece que a ATS é especialmente exposta a pressões, pois envolve interesses de governos, profissionais, pacientes, indústria e organismos internacionais, e afirma que a Conitec pretende atuar de forma alinhada a boas práticas globais de avaliação de tecnologias em saúde. Ponto para a Conitec.
Outro aspecto positivo é a clareza na definição do escopo do documento. Seu objetivo é orientar a identificação, prevenção, mitigação e gerenciamento de conflitos de interesses vivenciados pelos diferentes atores envolvidos nos processos da Conitec. Isso inclui desde a elaboração de relatórios técnicos até a decisão final da SCTIE. Na prática, isso significa que ninguém está livre do escrutínio ético da Conitec; tanto quem produz estudos de ATS quanto quem vota nas recomendações está sujeito às mesmas exigências de transparência. Pau que dá em Chico, dá em Francisco.
O manual também reforça o papel do DGITS como Secretaria-Executiva da Conitec, responsável que é por promover transparência e controle social em todas as fases, o que inclui a publicação das decisões e a abertura dos processos ao escrutínio público. Alinhados ao Decreto nº 9.203/2017, são mencionados princípios de governança como integridade, prestação de contas e transparência, conectando o documento a uma política mais ampla de integridade na administração pública federal.
Fraquezas que demandam atenção urgente
Apesar dos avanços, o manual deixa lacunas relevantes quando se observa sua aplicação em contextos críticos do SUS. Embora cite normas de governança, ele não articula de forma explícita suas regras com a Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção) nem com a nº 8.112/1990, que disciplina deveres, proibições e sanções aos servidores públicos. Por exemplo, é importante esclarecer o que acontece quando alguém omite deliberadamente um vínculo com a indústria ou fornece informações sabidamente incompletas em sua declaração de conflito de interesses.
Da mesma forma, o documento não detalha como seus procedimentos se conectam com o Programa de Integridade do Ministério da Saúde (IntegriSAÚDE), embora esteja claramente inspirado nesse ambiente normativo.
Em um contexto em que órgãos de controle como CGU e TCU cobram alinhamento entre instrumentos de integridade, essa desconexão operacional pode dificultar a responsabilização em casos mais graves. Sabemos que sem previsões claras de encaminhamento a corregedorias e à CGU, o risco é que o manual seja forte em discurso, mas frágil em consequências,: um tiro n’água, para inglês ver.
Outra ausência relevante é a sua omissão quanto a protocolos específicos para situações de emergência sanitária ou de decisões sob forte pressão, como pandemias ou introdução imediata de terapias de altíssimo custo. Nesses contextos, os prazos rigorosos para reuniões extraordinárias e a necessidade de decisões céleres podem tornar inviáveis regras rígidas (como a entrega de declarações até o dia anterior à reunião) e aumentar o risco de captura de agenda por atores inescrupulosos. O manual é enfático ao reconhecer a importância da integridade, mas ainda não traduz plenamente esse reconhecimento em rotinas adaptadas a cenários de crise.
No frigir dos ovos, o que está em jogo?
No que tange à comunicação com o público leigo, o manual acerta ao explicar de forma introdutória o que é governança e por que a integridade ganhou centralidade na Administração Pública. Ao vincular a Conitec a princípios como transparência, lisura e sustentabilidade de recursos públicos, o texto ajuda a construir uma narrativa de compromisso com o interesse coletivo. Isso é especialmente relevante numa área em que decisões podem significar tanto acesso quanto recusa de tratamento a milhares de pacientes.
Mas nem tudo é mar de rosas. Sob a perspectiva da governança regulatória, é curioso notar a ausência de elementos que facilitem o controle social, como indicadores públicos de desempenho na gestão de conflitos de interesses ou relatórios periódicos de integridade da Conitec. A sociedade passa a saber que existe um manual, mas continua com poucas ferramentas para avaliar, anualmente, se os conflitos têm sido de fato detectados, mitigados e punidos quando necessário. Não fosse a possibilidade de revisões sucessivas do manual, anunciada pela Conitec, esta teria sido uma oportunidade perdida, num momento em que descalabros observados na atuação de associações de pacientes como balcão de negócios junto à indústria estão a se revelar gritantes.
Em um cenário ideal, o manual poderia funcionar também como ponte entre a Conitec e o restante da máquina pública federal. Isso deixaria mais claras as interfaces com mecanismos de responsabilização administrativa, civil e, quando couber, penal previstos em normas como a Lei de Improbidade Administrativa e a própria Lei Anticorrupção. Sem isso, o risco é que a gestão de conflitos de interesses permaneça circunscrita à esfera técnica da ATS, sem plena integração aos sistemas de controle e integridade do Estado brasileiro. O sol é o melhor desinfetante. Trazer à luz do dia eventuais conflitos de interesses se revela pedagógico e mandatório em contextos de controle social.
Manual vivo ou peça para ficar na estante?
A notícia promissora é que o próprio manual se apresenta como documento sujeito a revisões e melhorias, em linha com a ideia de que a governança deve ser dinâmica e responsiva a novos desafios éticos. Em um campo marcado pela vertiginosa introdução de tecnologias inovadoras, muitas vezes de altíssimo custo e com forte protagonismo da indústria, essa abertura à atualização é crucial para que o instrumento não se torne obsoleto ou peça da mobília.
Do ponto de vista do Ministério da Saúde e da Conitec, o desafio agora é transformar tal peça normativa em prática institucional consistente. É necessário incorporar o manual em treinamentos regulares, divulgar amplamente as regras para todos os atores envolvidos e, sobretudo, assegurar que descumprimentos relevantes gerem consequências proporcionais, em consonância com a legislação brasileira de integridade e combate à corrupção. Sem previsão de sanções mais robustas, o documento corre o risco de permanecer um mero protocolo de intenções. E de nobres intenções o inferno anda cheio.
Resumindo a opereta
O Manual de Governança e Gestão de Conflitos de Interesses da Conitec representa um avanço inequívoco na institucionalização da integridade nas decisões sobre incorporação de tecnologias no SUS. Ele reconhece explicitamente a vulnerabilidade da ATS a pressões e propõe um conjunto de mecanismos para enfrentá-las. Catorze anos se passaram desde a criação da Conitec; conflitos de interesse provavelmente ocorreram sem serem notados e, sobretudo, punidos, mas nunca é tarde para se acertar o rumo.
Por outro lado, o documento apresenta brechas: falta de integração com a Lei nº 12.846/2013, protocolos para situações de emergência, conexão com o programa de integridade do Ministério da Saúde e criação de métricas públicas de desempenho na gestão de conflitos.
Em um momento em que a confiança nas instituições públicas é constantemente contestada, a forma como a Conitec aplicará esse manual pode se tornar um termômetro da capacidade do SUS em combinar rigor técnico com transparência ética. Devemos voltar a esse assunto em breve, dada sua relevância.
E você? O que acha? O manual será um instrumento vivo de controle social ou apenas mais um documento formal? Deixe aqui seu comentário.

Texto redigido sem Inteligência Artificial


