A recém-promulgada Lei nº 15.120/2025 representa um marco na institucionalização da participação social na Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), ao incluir formalmente um assento com direito a voto para organizações da sociedade civil (OSCs). Apesar do avanço, o dispositivo legal impõe desafios éticos, regulatórios e operacionais que demandam atenção urgente.
A promulgação da Lei nº 15.120/2025, publicada em 7 de abril, introduz uma mudança histórica na composição da Conitec, ao reservar um assento com direito a voto para representantes de organizações da sociedade civil atuantes na condição de saúde objeto de deliberação. Essa participação rotativa promete reforçar o controle social e trazer ao centro da tomada de decisão a voz das pessoas afetadas diretamente pelas tecnologias avaliadas — como pacientes, cuidadores e defensores de direitos.
Contudo, a regulamentação dessa nova forma de participação está longe de ser trivial.
A menção pública da pauta das doenças raras como uma das bandeiras da deputada que propôs o PL que deu origem à lei, em sua campanha eleitoral em 2022, somada à articulação política visível entre atores destacados do advocacy e parlamentares como ela, aponta para um contexto de atuação conjunta. Isso, por si só, não configura irregularidade, mas exige atenção a princípios de transparência e governança nos processos de formulação de políticas públicas, visando prevenir conluios pouco republicanos e tráfico de influência.
Assim, ao se avaliar os desdobramentos da nova Lei, é legítimo observar tais relações entre atores do advocacy e parlamentares sob o prisma da accountability (responsabilização) democrática. Isso visa evitar a captura do parlamento pela indústria farmacêutica, mediada pela atuação pouco ética de algumas associações de pacientes a ela de praxe estreitamente ligadas.
O que diz a nova lei
A Lei altera o artigo 19-Q da Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/1990), incorporando ao colegiado da Conitec quatro novos assentos: um indicado pelo Conselho Nacional de Saúde, outro pelo Conselho Federal de Medicina, um pela Associação Médica Brasileira e um pela sociedade civil — esse último com caráter rotativo e designado conforme a área da pauta analisada.
O dispositivo ainda determina que a própria Conitec regulamente, em até 180 dias, os critérios de desempate e os requisitos de indicação da organização da sociedade civil. Essa brevidade para operacionalização impõe um esforço regulatório de alta complexidade, especialmente frente à diversidade do campo da saúde e à pluralidade de OSCs atuantes no Brasil.
Avanços inegáveis
A presença formal da sociedade civil com direito a voto — e não apenas como observadora — é um avanço democrático no campo das políticas de saúde baseadas em evidências. A medida fortalece:
- A legitimidade das decisões da Conitec.
- A inclusão de saberes experienciados, muitas vezes invisibilizados nos processos técnicos.
- A transparência das deliberações.
- O alinhamento com princípios constitucionais do SUS como a participação social.
Propostas em debate e alguns riscos
Um experimento realizado por Tiago Farina, ativista em políticas de saúde, com ferramentas de inteligência artificial, revelou um cenário complexo ensejado por esta lei, antes de sua regulamentação pela Conitec: falta de critérios claros, risco de judicializações, insegurança jurídica, além do perigo da captura regulatória por entidades com baixa representatividade ou conflitos de interesse.
O experimento levantou pontos críticos que precisam ser enfrentados com pragmatismo e ética pela Conitec. Dentre os riscos, destacam-se:
- Disputas e judicialização: a ausência de critérios objetivos pode gerar conflitos entre organizações com atuação em uma mesma condição de saúde.
- Insegurança jurídica: Sem uma metodologia clara de seleção, qualquer decisão da Conitec poderá ser contestada.
- Conflito de interesses: há o risco de que OSCs com vínculos indiretos com a indústria ou baixa base representativa ocupem o assento.
- Desigualdade de acesso à participação: organizações com menos recursos ou menos presença institucionalizada poderão ser excluídas, acirrando desigualdades históricas.
O experimento apresentou cinco alternativas de regulamentação para o Regimento Interno da Conitec. Elas vão desde chamadas públicas com critérios objetivos e sorteio em caso de empate, até a indicação por colegiados de OSCs, uso de sistema de pontuação e listas tríplices elaboradas pelo Conselho Nacional de Saúde. Cada uma carrega vantagens e riscos próprios em termos de legitimidade, agilidade e prevenção de conflitos.
Entenda as 5 alternativas propostas pela IA para regulamentar a participação das OSCs na Conitec
1. Chamada Pública Simplificada + Sorteio (transparência e agilidade)
- A cada pauta, a Conitec lança uma chamada pública.
- Se mais de uma OSC se habilitar, a escolha é por sorteio público.
- Requer comprovação de atuação na área e ausência de conflito de interesses.
📌 Vantagem: Processo simples, acessível e rápido.
⚠️ Risco: Pode favorecer entidades menos qualificadas, se sorteadas.
2. Cadastro Nacional + Rodízio por Critérios Objetivos
- OSCs se cadastram previamente, informando áreas de atuação.
- A Conitec seleciona com base em tempo de atuação e rodízio.
- Sorteio só em caso de empate.
📌 Vantagem: Dá previsibilidade e reduz disputas.
⚠️ Risco: Exige estrutura contínua de atualização e monitoramento.
3. Indicação por Rede ou Colegiado de OSCs
- Redes reconhecidas indicam a OSC mais representativa.
- Aplicável quando houver articulação coletiva na área.
- Subsidiariamente, usa-se o modelo da chamada pública.
📌 Vantagem: Valoriza articulação em rede e legitimidade política.
⚠️ Risco: Pode excluir entidades fora das redes formalizadas.
4. Sistema de Pontuação Técnica (meritocracia regulatória)
- Critérios objetivos geram pontuação: atuação, abrangência, produção técnica, número de atendidos.
- A OSC com maior pontuação é selecionada.
📌 Vantagem: Foco em evidências e impacto real da atuação.
⚠️ Risco: Alto grau de burocracia e dificuldade de comprovação para OSCs menores.
5. Lista Tríplice indicada pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS)
- Para cada pauta, o CNS indica três OSCs.
- A Conitec escolhe uma com base em critérios de relevância e ausência de conflito de interesse.
📌 Vantagem: Integra controle social institucional ao processo.
⚠️ Risco: Processo pode ser mais lento e sujeito a influências políticas.
🔎 Importante: Todas as alternativas exigem comprovação de atuação na área da condição de saúde analisada e mecanismos para mitigar conflitos de interesse — organizacionais e individuais.
Clique aqui para ver as cinco alternativas na íntegra
Implicações para o advocacy em doenças raras
No campo das doenças raras, esse novo modelo traz tanto promessas quanto armadilhas. Por um lado, abre espaço para que organizações de pacientes, muitas vezes marginalizadas nos processos decisórios, participem da incorporação de tecnologias que lhes dizem respeito. Por outro lado, a exigência de “representatividade nacional” pode excluir iniciativas locais extremamente relevantes. Além disso, muitas OSCs de doenças raras não possuem estrutura para concorrer em chamadas públicas competitivas — o que exige modelos sensíveis à realidade desse ecossistema.
Próximos passos: regulamentar com responsabilidade
A tarefa agora está nas mãos da própria Conitec, que terá até outubro de 2025 para publicar o novo regimento. Nesse intervalo, é fundamental que o processo seja participativo, com ampla escuta das organizações potencialmente elegíveis.
Conclusão: A Lei nº 15.120/2025 representa uma janela de oportunidade para uma participação social mais robusta e significativa no SUS. Mas, sem uma regulamentação ética, transparente e factível, corremos o risco de transformar esse avanço em mais um obstáculo. Cabe agora à sociedade civil, aos gestores públicos e aos especialistas regulatórios garantir que esse novo assento na Conitec não seja apenas simbólico ou produto de “tenebrosas transações” — mas efetivamente transformador.
Para saber mais: Um novo capítulo na composição da Conitec: o que muda com a Lei nº 15.120/2025 e quais os próximos passos, por Verônica Stasiak