Cláudio Cordovil

“Pacientes-especialistas”: mercado ou perda de autonomia?

O desenvolvimento de medicamentos, historicamente afastado das iniciativas de engajamento de pacientes que se popularizaram na saúde, vive agora uma suposta “virada participativa”. Esse movimento refletiria uma reavaliação do papel dos pacientes, cujas perspectivas têm sido cada vez mais valorizadas como fundamentais nesse processo.

No entanto, artigo publicado por Claudia Egher e cols questiona o potencial democrático dessa inclusão. Ao examinar o curso de capacitação intitulado European Patients’ Academy on Therapeutic Innovation (EUPATI) _ referência na educação de pacientes na Europa _ os autores alertam para as exigências epistemológicas significativas impostas a esses pacientes, bem como para o risco de uma participação limitada a uma elite de pacientes altamente qualificados.

Tendo como base um diálogo entre pesquisadores e profissionais, o artigo explora as oportunidades e limitações das práticas participativas no desenvolvimento de medicamentos, questionando se a inclusão de pacientes realmente promove a democratização do conhecimento ou se acaba reforçando barreiras que limitam a participação a um grupo restrito, ou, no bom português, a uma panelinha.

Antes de mais nada necessário dizer que tive o prazer de conhecer Claudia em Utrecht, Holanda, em março de 2023, no jantar de encerramento da Conferência SPIN2023, parte integrante do projeto Social Pharmaceutical Innovation, do qual eu e Fernando Aith (USP) participamos.

A virada participativa já mencionada tem envolvido “uma reavaliação dos insights dos pacientes e de seu papel para além daquela como meros participantes dos ensaios clínicos”.

Os autores compreendem engajamento de pacientes no desenvolvimento de medicamentos como “a colaboração eficaz e ativa dos pacientes, defensores dos pacientes, representantes dos pacientes e/ou cuidadores nos processos e decisões dentro dos medicamentos ciclo de vida, juntamente com todas as outras partes interessadas relevantes, quando apropriado”.

A verdadeira democratização do acesso à saúde só será alcançada
quando todos os pacientes tiverem voz ativa,
e não apenas os selecionados pelo mercado.

O mercado de pacientes “especialistas”: oportunidade ou ameaça à democracia sanitária?

Um fenômeno inquietante tem ganhado destaque no campo do dito engajamento de pacientes na saúde: o surgimento de um mercado de pacientes “especialistas”.

Trata-se de um sistema complexo, onde a contribuição de pacientes capacitados e engajados é transformada em mercadoria altamente valorizada, especialmente pela indústria farmacêutica. Embora essa profissionalização aparente empoderar pacientes na tomada de decisões, surgem questionamentos críticos sobre as consequências desse modelo, tanto para os próprios pacientes quanto para a democratização do desenvolvimento de medicamentos.

No Brasil, já se fazem notar líderes de associações de pacientes que acumulam a função de consultores da indústria farmacêutica, como pessoas jurídicas (empresas de consultoria)

Claudia Egher, uma das autoras do artigo.

‘Paciente especialista’: agente duplo?

  1. Participação limitada e dirigida
    Embora a educação de pacientes e a formação de pacientes especialistas sejam apresentadas como ferramentas de empoderamento, a participação destes em processos decisórios geralmente é restrita a tópicos menos politizados e que são determinados por interesses da indústria. Isso reduz o potencial transformador da participação dos pacientes.
  2. Dependência financeira e autocensura
    Muitos pacientes “especialistas” evitam discutir questões sensíveis como preços abusivos de medicamentos ou desigualdade no acesso por receio de perder financiadores, especialmente empresas farmacêuticas. Isso reflete uma relação de dependência que compromete a autonomia dos pacientes e enfraquece sua capacidade de advocacy.
  3. Lucro para intermediários, compensação mínima para pacientes
    O surgimento de empresas intermediárias (consultorias) que conectam pacientes a iniciativas da indústria, cobrando taxas substanciais, acentua a desigualdade: enquanto intermediários lucram, os pacientes frequentemente recebem compensações financeiras modestas por suas contribuições.
  4. Exclusão e concentração de poder
    O mercado favorece um seleto grupo de “pacientes vip” – aqueles com habilidades e experiência valorizadas pela indústria – enquanto exclui a maioria dos pacientes que não atendem aos critérios padronizados. Essa concentração de oportunidades cria um sistema elitista e pouco inclusivo.
  5. Risco de despolitização
    Temas cruciais como acesso a medicamentos e equidade no sistema de saúde permanecem fora da agenda principal nestes casos. Essa omissão compromete a representatividade dos pacientes e perpetua desigualdades globais no tratamento de doenças.

Ninguém pode servir a dois senhores; pois odiará um e amará o outro,
ou se dedicará a um e desprezará o outro.
Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro.

Mateus, 6:24

O conflito de interesses dos “pacientes-especialistas-consultores”

Quando uma pessoa lidera uma associação de pacientes e simultaneamente presta consultorias para a indústria através de sua própria empresa sobre o mesmo tema, isso pode gerar questões éticas e de transparência.

Esse tipo de situação pode criar a percepção de que suas ações ou decisões na associação supostamente em prol dos pacientes estariam sendo influenciadas por seus interesses pessoais e comerciais.

Os principais pontos críticos nestes casos são:

  1. Prioridades conflitantes: O/a líder da associação de pacientes pode priorizar interesses financeiros em detrimento das necessidades dos pacientes ou da missão da associação, o que comprometeria a representatividade dos pacientes.
  2. Transparência: É fundamental que haja uma comunicação clara sobre os interesses comerciais destas lideranças de pacientes para que todas as partes envolvidas — incluindo pacientes e possíveis parceiros da associação — possam avaliar o impacto dessas atividades nas decisões da associação.
  3. Impacto na tomada de decisões: Consultorias comandadas por líderes de associações de pacientes podem influenciar o direcionamento de políticas, alianças estratégicas ou campanhas da associação, dependendo dos interesses de clientes da consultoria.
  4. Percepção pública: Mesmo que não haja um impacto direto, a simples percepção de um possível conflito de interesses nestes casos pode prejudicar a credibilidade tanto da associação quanto da empresa, o que pode afetar a confiança dos pacientes e patrocinadores.

Para mitigar esse risco, é recomendável que o líder da associação declare publicamente seus interesses comerciais e implemente medidas de governança para separar suas funções na associação e sua atuação na empresa.

Reflexões finais

Embora o surgimento desse mercado possa ser visto como um avanço na profissionalização e no reconhecimento dos pacientes, ele também levanta preocupações éticas e estruturais. A dependência de interesses comerciais ameaça a autonomia dos pacientes e pode distorcer sua missão de advocacy. Para muitos especialistas, a esperança reside na criação de organizações que protejam os pacientes dessas pressões econômicas e incentivem uma participação mais inclusiva e politicamente engajada.

No entanto, é imperativo que o debate avance e que iniciativas globais sejam repensadas para que o potencial transformador dos pacientes realmente promova justiça e equidade no desenvolvimento de medicamentos. A verdadeira democratização do processo só será alcançada quando todos os pacientes tiverem voz ativa, e não apenas os selecionados pelo mercado.

author avatar
Cláudio Cordovil Pesquisador em Saúde Pública
Jornalista profissional. Servidor Público. Pesquisador em Saúde Pública (ENSP/Fiocruz). Especializado em Doenças Raras, Saúde Pública e Farmacoeconomia . Mestre e Doutor em Comunicação e Cultura (Eco/UFRJ). Prêmio José Reis de Jornalismo Científico concedido pelo CNPq.

Deixe um comentário