Cláudio Cordovil

O que aprendi com os raros portugueses: O caso Manuel Matos (1)

Portugal

Tive a oportunidade de realizar um doutorado sanduíche no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, entre os anos de 2007 e 2008. Como trabalho de campo, escolhi passar seis meses pesquisando uma associação de pacientes, a Associação Portuguesa de Neuromusculares. Queria entender melhor, de um ponto de vista sociológico, coletivos de portadores de doenças raras. Fui muito bem recebido pela Assunção Bessa, então presidente da APN, mãe do Zé Pedro, portador de distrofia muscular de Duchenne.

Aprendi muito com eles durante seis meses. Como sempre faço em trabalhos de campo de longa duração, ofereci, como contrapartida de meu estudo e da disponibilidade dos pacientes em me acolher por longo período, meus serviços de jornalista. Assim, prestei serviços de comunicação para a APN, durante o tempo que lá estive. Nada de muito significativo em termos de tempo dedicado a esta atividade. Fazia com prazer.

Assim, pude tomar pé da situação dramática de Manuel Matos, que ganhou as páginas de um dos jornais mais importantes de Portugal. A história do Manel (como carinhosamente era chamado por nós) é a história de milhões de brasileiros talvez, portadores de doenças raras. E por isso a registro aqui. É também uma homenagem a este doce amigo que tive o privilégio de conhecer.

Para você entender melhor o drama de Manel, clique aqui.

Inspirado pelo caso do ‘Manel’, escrevi um comunicado para a imprensa local, que você pode ler abaixo:

Manuel Matos e a ‘vida nua’  (novembro 2007)

Cláudio Cordovil*

Há algo de escandaloso na morte anunciada de Manoel Matos, portador de Atrofia Muscular Espinhal tipo I (doença de Werdnig-Hoffman). Desprovido de qualquer cuidado paliativo proveniente do Estado português por anos a fio, insiste em viver e a avocar para si tal direito. Estivesse Manoel Matos compenetrado em morrer, com a mortalha já vestida, face emaciada e resignado diante de seu lento martírio, tudo seria mais fácil. Bastaria manifestar tal hipotético desejo em cartas abertas às autoridades portuguesas e a mídia acorreria em peso à sua modesta casa, com seus inclementes holofotes. Mas Manoel parece não interessar a ninguém. Exatamente porque insiste em viver. É isto precisamente o que a sociedade não lhe perdoa.

O filósofo italiano Giorgio Agamben nos recorda em texto de vigor intenso, já transformado em clássico das Ciências Humanas, a figura do homo sacer, personagem contemplado na antiga lei romana, o que não lhe retira a aura de sinistra atualidade. O homo sacer, lembra-nos Agamben, é o ser mais vulnerável na comunidade politica, e sua absoluta vulnerabilidade só faz acentuar, quase que dialeticamente, o poder brutalmente discricionário que o soberano tem de dispor sobre sua vida e sua morte.

Banido da companhia dos outros homens e do seu campo de visão, o homo sacer foi abandonado pela ordem legal e jurídica. Por isso vale pouco. Situa-se no campo do infrapolítico e do infralegal. Não é cidadão de pleno direito. É infrahumano. Subhomem, subser.

Reduzido ao que Agamben denomina “vida nua”, fora do alcance da política e da lei, o homo sacer é tipo que morto não faria falta. Poderia ter sua vida ceifada por quem assim desejasse, e seu algoz estaria livre de qualquer sanção penal. Matá-lo não representaria um crime, na medida em que nenhuma lei teria sido violada.

Parafraseando Fernando Pessoa, o homo sacer é exilado ao mesmo tempo de duas terras, afastado que está da lei humana, que regula a atividade política, e da lei divina, que dispõe sobre a atividade religiosa. Vivendo menos do que uma vida digna deste nome, o homo sacer pode ser exterminado sem pompa, sem circunstância _ e brutal condenação pós-moderna _ sem mídia.

A agudeza intelectual de Agamben reconheceu nos judeus moídos nos campos de concentração a moderna metáfora da condição de homo sacer.

Auschwitz _ e não a Declaração Universal dos Direitos Humanos _ seria assim o verdadeiro emblema da modernidade. Nem criminosos, nem objetos sacrificiais, os judeus não escaparam da morte sem sentido, justamente porque sua vida foi transformada em algo sem sentido.

Manuel Matos vê sentido em sua vida, e neste sentido tem muito a nos ensinar, dizem os que privam de sua intimidade. Mas é isto precisamente o que não lhe perdoam.

No próximo post, você continua a acompanhar o dramático caso de Manuel Matos, que poderia ser a história de alguns milhões de brasileiros.

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Cláudio Cordovil Pesquisador em Saúde Pública
Jornalista profissional. Servidor Público. Pesquisador em Saúde Pública (ENSP/Fiocruz). Especializado em Doenças Raras, Saúde Pública e Farmacoeconomia . Mestre e Doutor em Comunicação e Cultura (Eco/UFRJ). Prêmio José Reis de Jornalismo Científico concedido pelo CNPq.

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