Muito além do SUS (II): Vulnerabilidade e doenças raras

Doenças raras e vulnerabilidade andam sempre de mãos dadas. Na semana retrasada (13/1), iniciamos aqui a publicação de uma série de quatro posts comentando relatório da Comissão de Ética da Alemanha intitulado Os desafios da provisão de cuidados para doenças raras. A primeira parte desta série tratou da vulnerabilidade médica, social e econômica das pessoas que vivem com doenças raras. Abordou também os aspectos éticos que devem presidir as relações com este que é considerado um dos grupos mais vulneráveis da sociedade em qualquer parte do mundo.

[su_box title=”Um resumo do que você vai ler!” style=”glass” box_color=”#2215d5″ title_color=”#f0ce48″ radius=”5″]
— Como um dos grupos mais vulneráveis da sociedade atual, os doentes raros se beneficiariam de melhor treinamento de profissionais de saúde sobre suas necessidades.  
—Para evitar a marginalização dos doentes raros, necessário se faz empoderá-los, não sem antes eliminar quaisquer conflitos de interesse que as associações de pacientes porventura possam ter, dadas suas eventuais relações com a indústria farmacêutica. [/su_box]

Agora vamos tratar das medidas necessárias para se mitigar tal vulnerabilidade e que basicamente dizem respeito a:

  • Proteção contra tratamento deficiente e inadequado, e
  • Empoderamento dos pacientes

Se você perdeu o post da semana passada, pode conferi-lo aqui.

Proteção contra tratamento deficiente ou inadequado

Neste campo, o relatório sugere treinamento adequado e educação continuada dos profissionais de saúde, já ao nível da graduação. No contexto brasileiro, quando se fala de educação continuada e SUS está se referindo à educação permanente. O país possui uma Política Nacional de Educação Permanente em Saúde desde 2004. Em 2017, foi criado o Programa para o Fortalecimento das Práticas de Educação Permanente em Saúde no Sistema Único de Saúde (PRO EPS-SUS), voltado para os profissionais da Atenção Básica.

O documento alemão ressalta que a observância aos princípios bioéticos da beneficência e não-maleficência implica a necessidade de excelência nos cuidados em saúde, que, no caso das doenças raras, devem ser prestados em centros especializados. E que estes devem ter financiamento adequado!

Tal observação é feita no relatório porque os autores do documento afirmam que centros desta natureza [su_highlight]costumam ser as primeiras vítimas do corte de gastos (?!?!)[/su_highlight]. Em articulação com tais centros, os membros do Conselho de Ética da Alemanha recomendam instâncias virtuais de atendimento aos doentes raros, onde possam obter aconselhamento online e treinamento sobre como lidar com sua enfermidade.

Princípios bioéticos Definição, segundo Beauchamps & Childress
Autonomia Uma norma sobre o respeito pela capacidade de tomar decisões de pessoas autônomas
Beneficência Um grupo de normas para proporcionar benefícios e para ponderar benefícios contra regras e custos.
Não-maleficência Uma norma que previne que se provoquem danos.
Justiça Um grupo de normas para distribuir os benefícios, os riscos e os custos de forma justa. 

Em seu portal,  o Ministério da Saúde informa que o Brasil “conta com oito estabelecimentos habilitados e especializados para atendimento em Doenças Raras, distribuídos em diversas unidades federativas do Brasil”. No entanto, mais recentemente, foi anunciada a habilitação de oito novos Serviços de Referência em Doenças Raras, através da Portaria nº 3.166, de 3 de dezembro de 2019.

Num país de dimensões continentais, a oferta destes centros ainda é escassa. Daí a importância de se fortalecer também as instâncias virtuais de contato com estes pacientes, tal como proposto no relatório. Observe que a Alemanha tem a extensão territorial do Mato Grosso do Sul.

No Brasil, “o atendimento para as doenças raras é feito prioritariamente na Atenção Básica, principal porta de entrada para o SUS, e se houver necessidade o paciente será encaminhado para atendimento especializado em unidade de média ou alta complexidade”  (MS).

Empoderamento

Um grande remédio contra a marginalização de grupos vulneráveis, segundo o documento, são estratégias de empoderamento e participação. Coisa que anda faltando no Brasil.

A meta do empoderamento seria “envolver mais estreitamente as pessoas que vivem com doenças raras em decisões que as afetam de forma a melhor contemplar seus desejos e interesses”. Isto permitiria ganhos de qualidade no cuidado a elas prestado, segundo o relatório.

O Comitê de Ética da Alemanha também recomenda que os doentes raros [su_highlight]sejam consultados sobre decisões acerca de eventuais mudanças estruturais no sistema de saúde que lhes afetem diretamente[/su_highlight]. Isso, no SUS, apesar de toda sua declarada preocupação com participação social, ainda é um sonho distante. As decisões neste campo específico são, na maioria dos casos, monocráticas, ou, no melhor dos casos, pouco democráticas.

Por outro lado, o relatório é enfático em afirmar que a ampliação de participação desses pacientes exige [su_highlight]que estes estejam livres, na medida do possível, de conflito de interesses e que ajam de forma independente e transparente.[/su_highlight].

Dito em português claro, aqui os membros do Conselho de Ética da Alemanha se referem ao envolvimento muitas vezes pouco ético entre associações de pacientes e indústria farmacêutica. E o dado interessante [su_highlight]é a proposta de que tais associações sejam financiadas com dinheiro público[/su_highlight]. Aqui voltamos ao problema de se pensar como cidadão, e não como consumidor, já mencionado anteriormente.

E afirma o documento:

Conflitos de interesse podem surgir, por exemplo, quando associações de pacientes são instrumentalizadas por empresas farmacêuticas ou quando distintos grupos de pacientes organizados em grupos de ajuda mútua _ tais como pacientes e seus familiares _ possuem interesses diferentes.

E vê-se agora uma recomendação bastante interessante da Comissão de Ética da Alemanha, que reproduzimos abaixo

Tais conflitos de interesse podem ser evitados [su_highlight]através de financiamento público destes grupos ou pelo estabelecimento de estruturas organizacionais democráticas[/su_highlight]. Em particular, o financiamento público pode ajudar a diminuir a forte dependência econômica destas agremiações com relação à indústria farmacêutica.

E esta citação merece um comentário.

[su_note]Se o governo federal e os governos municipais e estaduais estão muito preocupados com o envolvimento das associações com a indústria farmacêutica, bastaria proporcionar a estes grupos financiamento público, ao invés de criminalizá-los de modo irresponsável. Porque é mais ou menos evidente que estes grupos precisarão de recursos financeiros para se manterem ativos. Que sejam então provenientes de governos, visando manter o caráter republicano destas agremiações! Resta saber como promover financiamento público de milhares de associações em potencial.[/su_note]

Em tempo. Este blog já publicou uma interessante série sobre a ética das relações entre associações de pacientes e indústria farmacêutica. Na falta de financiamento público, [su_highlight]que as associações ao menos observem padrões minimamente éticos em suas relações com a iniciativa privada[/su_highlight]. Abaixo você encontra os links destes posts bastante esclarecedores.

Como lidar com a indústria farmacêutica (I)

Como lidar com a indústria farmacêutica (II)

Como lidar com a indústria farmacêutica (III)

Como lidar com a indústria farmacêutica (IV)

Na próxima semana, publicaremos a Parte III desta série de quatro posts, onde trataremos da espera pelo medicamento.

 

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