Cláudio Cordovil

Elevidys na Neurology: “A ética e a toxicidade financeira da esperança exuberante”

Abaixo reproduzimos integralmente editorial publicado na prestigiada revista Neurology, onde problemas relacionados à autorização pela FDA do Elevidys nos EUA são apontados. A revista Neurology é uma publicação de referência no campo da neurologia, conhecida por divulgar pesquisas inovadoras e relevantes para a prática clínica. Ela desempenha um papel crucial no avanço do conhecimento sobre doenças neurológicas e no aprimoramento do cuidado aos pacientes. 

O que é um editorial?  Ao ler um editorial em uma revista científica como a Neurology, entenda-o como uma análise especializada assinada, que visa fomentar discussões qualificadas na comunidade acadêmica e clínica da neurologia

Principais destaques do editorial

  • “A Distrofia Muscular de Duchenne (DMD) causa fraqueza muscular progressiva e disfunção cardíaca, com expectativa média de vida de 28 anos.”
  • “Como a DMD é causada por uma perda de função, a terapia de reposição gênica é, teoricamente, uma opção atraente.”
  • “Vetores virais disponíveis atualmente conseguem carregar apenas genes de até 4,2 kb — bem abaixo dos 14 kb necessários.”
  • “Ainda não se sabe qual é a quantidade mínima necessária para um efeito terapêutico significativo.”
  • “Nenhum dos ensaios clínicos avaliados demonstrou eficácia no desfecho primário.”
  • “Foi recentemente divulgado que um adolescente de 16 anos […] morreu por insuficiência hepática.”
  • “Pfizer […] interrompeu o desenvolvimento de uma terapia semelhante […] duas mortes em seus ensaios clínicos.”
  • “O comitê de revisão da FDA […] posicionou-se contra a aprovação; essa recomendação, porém, foi ignorada.”
  • “O custo exorbitante de uma terapia que não se mostrou transformadora (US$ 3,2 milhões).”
  • “Pacientes que recebem uma terapia baseada em vetor adeno-associado (AAV) não poderão se beneficiar de futuras terapias que usem o mesmo vetor.”
  • “A reiterada decisão de um alto funcionário da FDA de ignorar as recomendações […] também é motivo de preocupação.”
  • “As falhas do caminho de aprovação acelerada vão além da dependência em marcadores substitutivos mal validados.”
  • “Embora o impacto clínico definitivo […] ainda não esteja claro, […] pode ser caracterizado como um caso de ‘esperança exuberante’.”
  • “A FDA se baseou amplamente na esperança ao longo do processo.” Quando deveria basear-se em Ciência.

Um blog é tão bom quanto as verdades que ele diz

O editorial da ‘Neurology’

A. Gordon Smith

Durante décadas, neurologistas têm se apoiado em uma esperança aspiracional ao tratar pacientes com doenças raras e genéticas. Até 10 ou 15 anos atrás, essa esperança baseava-se quase exclusivamente em avanços no entendimento dos mecanismos das doenças, especialmente na identificação de variantes patogênicas específicas. Ainda assim, por mais otimista que se fosse, a probabilidade de que uma terapia transformadora fosse aprovada a tempo de beneficiar um paciente em particular era praticamente nula. Hoje, no entanto, já existem diversas terapias moleculares transformadoras, como aquelas para atrofia muscular espinhal e para a esclerose lateral amiotrófica relacionada à superóxido dismutase-1. Para muitas condições, a esperança atual é mais realista do que aspiracional.

A distrofia muscular de Duchenne (DMD) é a forma mais comum de distrofia muscular, com incidência de 1 a cada 3 mil a 5 mil nascimentos de meninos. A DMD causa fraqueza muscular progressiva e disfunção cardíaca, com expectativa média de vida de 28 anos. A condição resulta da deleção do gene da distrofina, o maior do genoma humano.(1) Como a DMD é causada por uma perda de função, a terapia de reposição gênica é, teoricamente, uma opção atraente. No entanto, os vetores virais disponíveis atualmente conseguem carregar apenas genes de até 4,2 kb — bem abaixo dos 14 kb necessários para a distrofina de comprimento total. Por isso, os esforços atuais em terapia gênica têm se concentrado em construções genéticas truncadas que contêm regiões codificadoras cruciais do gene — as chamadas “microdistrofinas”. A promessa dessas terapias apoia-se em dados pré-clínicos e em observações clínicas de pacientes com fenótipos leves, apesar da ausência de quase 50% da distrofina. No entanto, ainda não se sabe qual é a quantidade mínima necessária para um efeito terapêutico significativo.(2)

Nesta edição da Neurology®, Oskoui e colaboradores (3) apresentam uma excelente revisão da série “Evidência em Foco” sobre a eficácia e a segurança da primeira terapia gênica com microdistrofina aprovada pela FDA para DMD: o delandistrogene moxeparvovec (nome comercial: Elevidys®). Nenhum dos ensaios clínicos avaliados demonstrou eficácia no desfecho primário, embora tenham sido observadas pequenas melhoras não significativas em desfechos secundários. Houve expressão detectável de microdistrofina em biópsias musculares. Por exemplo, no ensaio de fase 3 EMBARK, após 60 meses de tratamento, observou-se uma média de 19,10% de expressão em comparação com o valor basal. Apesar da boa tolerabilidade geral nos estudos, foi recentemente divulgado que um adolescente de 16 anos tratado com delandistrogene moxeparvovec morreu por insuficiência hepática — um efeito adverso reconhecido das terapias gênicas baseadas em adenovírus. Até o momento, cerca de 800 pacientes já foram tratados, segundo a Sarepta Therapeutics. (4)

Esse fato se soma à decisão da Pfizer de interromper o desenvolvimento de uma terapia semelhante devido à ausência de resposta clínica e à ocorrência de duas mortes em seus ensaios clínicos.(5)

Em junho de 2023, a FDA concedeu aprovação acelerada para o delandistrogene moxeparvovec em pacientes ambulatoriais de quatro a cinco anos, com base na expressão da microdistrofina e em análises de subgrupos de um estudo de fase II (nível de evidência III). O comitê de revisão da FDA considerou que não havia evidência suficiente de que a expressão da microdistrofina fosse um desfecho substitutivo validado e recomendou sua não-aprovação; essa negativa de recomendação, porém, foi ignorada pelo diretor do Centro para Avaliação e Pesquisa Biológica (CBER). Em junho de 2024, a FDA concedeu aprovação total para meninos deambuladores e aprovação acelerada para meninos não deambuladores de quatro anos, com base nos dados dos ensaios EMBARK (fase 3) e ENDEAVOR (fase 1b). Novamente, o diretor do CBER contrariou a recomendação do comitê de revisão da FDA.

Essas aprovações levantam questões éticas importantes: a ausência de resposta clínica relevante; a dependência de um marcador substitutivo sem validação como preditor confiável de eficácia terapêutica; e o custo exorbitante de uma terapia que não se mostrou transformadora (US$ 3,2 milhões, cerca de 17 milhões de reais). Esse valor representa um risco para os sistemas de saúde e impõe às famílias a possibilidade de toxicidade financeira e desigualdade no acesso ao tratamento. Há também um custo de oportunidade: pacientes que recebem uma terapia baseada em vetor adeno-associado (AAV) não poderão se beneficiar de futuras terapias que usem o mesmo vetor. Isso é relevante, já que pesquisas estão em andamento para viabilizar a expressão de distrofina em versões maiores, as chamadas “midi-distrofinas”.(6)

A reiterada decisão de um alto funcionário da FDA de ignorar as recomendações de painéis consultivos e especialistas internos também é motivo de preocupação. As falhas do caminho de aprovação acelerada vão além da dependência em marcadores substitutivos mal validados; incluem ainda o frequente descumprimento das exigências de realização de estudos de acompanhamento por parte das empresas.(7)

Em 1996, Alan Greenspan, então presidente do Federal Reserve dos EUA [o equivalente ao Banco Central do Brasil], usou o termo “exuberância irracional” para descrever a supervalorização infundada de investimentos em empresas de internet, o que resultou na bolha das pontocom. Assim como era certo em 1996 que a internet transformaria o acesso à informação, também é certo hoje que terapias moleculares para doenças neuromusculares raras já mudaram o cenário clínico e que há potencial real para tratamentos transformadores da DMD — por exemplo, aqueles que prolonguem a capacidade de deambulação até a terceira década de vida ou mais.

Embora o impacto clínico definitivo do delandistrogene moxeparvovec ainda não esteja claro, o caminho que levou à sua aprovação — baseado em um sinal de biomarcador não validado, sem benefício clínico evidente, e contra a orientação de especialistas regulatórios — pode ser caracterizado como um caso de “esperança exuberante”. Só o tempo dirá se essa esperança foi justificada. Mas, considerando o impacto clínico modesto, a fragilidade das evidências quanto à validade preditiva da microdistrofina, o preço que não atende aos critérios de custo-efetividade e as preocupações de segurança, parece evidente que a FDA se baseou amplamente na esperança ao longo do processo.

Enquanto aguardamos (e defendemos) reformas no processo de aprovação da FDA e políticas mais ativas de mitigação da toxicidade financeira, a revisão de Oskoui e colaboradores fornece aos neurologistas um guia importante para abordar discussões complexas com pacientes com DMD e suas famílias.

Referências

1. Lee BH. The dystrophinopathies. Continuum (Minneap Minn). 2022;28(6): 1678-1697. doi:10.1212/CON.0000000000001208

2. England SB, Nicholson LV, Johnson MA, et al. Very mild muscular dystrophy associated with the deletion of 46% of dystrophin. Nature. 1990;343(6254):180-182. doi: 10.1038/343180a0

3. Oskoui M, Caller TA, Parsons JA, et al. Delandistrogene moxeparvovec gene therapy in individuals with Duchenne muscular dystrophy: Evidence in focus: report of the AAN guidelines subcommittee. Neurology. 2025;104(11):e213604. doi:10.1212/ WNL.0000000000213604

4. Mast J. Teenager who received Elevidys, Sarepta’s Duchenne gene therapie, dies. Stat News. 2025. https://www.statnews.com/2025/03/18/elevidys-sarepta-duchennedeath/

5. Mast J, Feurstein A. Perplexing results from Duchenne muscular dystrophy trial raise questions about gene therapies. Stat News. 2024. https://www.statnews.com/2024/10/21/duchenne-muscular-dystrophy-gene-therapy-pfizer-sarepta/

6. Tasfaout H, Halbert CL, McMillen TS, et al. Split interin-mediated protein transsplicing to express large dystrophins. Nature. 2024;632(8023):192-200. doi:10.1038/s41586-024-07710-8

7. Liu ITT, Kesselheim AS, Cliff ERS. Clinical benefit and regulatory outcomes of cancer drugs receiving accelerated approval. JAMA. 2024;331(17):1471-1479. doi:10.1001/jama.2024.2396


Financiamento do estudo: Nenhum financiamento direcionado foi declarado.

Divulgação: O autor declara não possuir conflitos de interesse relevantes. Para divulgações completas, acesse Neurology.org/N.

Histórico de publicação: Recebido em 24 de março de 2025. Aceito em 7 de abril de 2025. Publicado em 10 de junho de 2025.

Título original: Microdystrophin Gene Therapy for Duchenne Muscular Dystrophy: The Ethics and Financial Toxicity of Exuberant Hope.

Neurology | Volume 104, Número 11 | 10 Junho, 2025


Nota da Redação: De acordo com a Seção 107 da Lei de Direitos Autorais de 1976, dos EUA, é permitido o “uso justo” (fair use) de obras de terceiros para fins como crítica, comentário, reportagem jornalística, ensino, bolsa de estudos e pesquisa. O uso justo é aquele permitido pela lei de direitos autorais que, de outra forma, poderia ser considerado infrator. O uso sem fins lucrativos, educacional ou pessoal inclina a balança a favor do uso justo. Por esta razão, estamos reproduzindo aqui editorial da Neurology, por entender que o tema é de interesse público e este blog não tem finalidades comerciais.

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Cláudio Cordovil Pesquisador em Saúde Pública
Jornalista profissional. Servidor Público. Pesquisador em Saúde Pública (ENSP/Fiocruz). Especializado em Doenças Raras, Saúde Pública e Farmacoeconomia . Mestre e Doutor em Comunicação e Cultura (Eco/UFRJ). Prêmio José Reis de Jornalismo Científico concedido pelo CNPq.

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