No jargão jornalístico, “barriga” refere-se a um erro de apuração, um erro grave que acaba por comprometer a reportagem ou matéria. É uma gíria para designar uma informação incorreta que foi publicada, causando constrangimento e afetando a credibilidade do veículo de comunicação.
Do alto dos meus 43 anos de jornalismo profissional, ontem saltei das tamancas, como diriam os antigos, ao ver meu ofício tão vilipendiado.
O texto (não posso chamar de “matéria”, muito menos de “reportagem”) publicado ontem (31/5) pela jornalista Carolina Carvalho em órgão relacionado ao Diário do Comércio (MG) sobre a oferta da terapia gênica Elevidys para distrofia muscular de Duchenne no Sistema Único de Saúde (SUS) repete, requenta, quase na íntegra, mas deturpando, um comunicado oficial do Ministério da Saúde, divulgado em 19 de fevereiro deste ano.
O texto de Carolina, apresentado como novidade, omite etapas regulatórias, custos e o contexto judicial que tornaram possível apenas duas infusões experimentais, sugerindo ao leitor desavisado a incorporação plena de tratamento que custa R$ 11 milhões a dose.
A “barriga” é, portanto, uma informação falsa ou distorcida que é publicada em um veículo jornalístico.
Declarações recicladas, contexto ausente
As falas atribuídas ao coordenador-geral de Doenças Raras, Natan Monsores pela “repórter formada pela Universidade Federal de Ouro Preto” (de acordo com o veículo), foram copiadas do release de fevereiro. Não há indicação de que se trata de declarações antigas, ora descontextualizadas, nem de que Monsores não concedeu nova entrevista. Trechos como “Essa experiência nos mostra que o SUS pode estar na vanguarda” aparecem palavra por palavra, literalmente, sem atribuição de fonte (no caso, o Ministério da Saúde, em fevereiro deste ano).
A mesma prática ocorre com a advertência da neurologista Michelle Becker sobre a eficácia limitada da terapia. Copiada sem contextualização temporal, a citação reforça a falsa impressão de reportagem com frescor, inédita.
Promessa inexistente de cobertura universal
O título “SUS vai disponibilizar tratamento caríssimo para portadores de doença rara” leva o leitor a crer que o Elevidys está incorporado à rotina do SUS. Na realidade, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias em Saúde (Conitec) ainda não se pronunciou oficialmente sobre eventual incorporação ao SUS, imperativo legal para tal.
Tampouco a repórter cita que as duas infusões realizadas resultam de decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), sem preceder política pública alguma.
Passando a limpo o que não se deve fazer em jornalismo, aponto os problemas no texto “tipo-matéria”.
- Requentamento de conteúdo sem transparência sobre a fonte e data.
- Atribuição enganosa de falas e de atualidade das informações.
- Omissão do caráter judicial e excepcional do procedimento.
- Ausência de checagem com especialistas externos ou novas fontes.
- Potencial plágio ao reproduzir trechos oficiais sem crédito claro a respeito de sua procedência.
Ao confundir um caso judicial com política de saúde, a matéria pode gerar expectativas irreais entre famílias de pacientes e pressionar gestores por uma cobertura ainda não aprovada. Um desastre. Tudo que um governo não precisa. Para leitores e formadores de opinião, a reportagem falha em sua função básica de esclarecer o estágio real da tecnologia no âmbito do SUS.
Que este episódio sirva de alerta: jornalismo não é mero ato de copiar-colar, mas ofício de apurar com rigor, contextualizar e oferecer ao público a verdade possível. Quando a pressa e o amadorismo substituem a reportagem séria, não apenas se desinforma a sociedade — mina-se a confiança coletiva, destrói-se o prestígio de fontes idôneas e instaura-se um terreno fértil para o assassinato de reputações.
Defender o bom jornalismo é defender a própria democracia: sem método, responsabilidade ética e transparência, qualquer “notícia” degenera em ruído, e o preço é pago por todos nós.
Parafraseando Chico Buarque, “O manual de redação passou na janela/Só Carolina não viu”.