Cláudio Cordovil

A Lei 15.120/2025 e o ‘calcanhar de Aquiles’ da Conitec

O “calcanhar de Aquiles”: Expressão que simboliza um ponto de vulnerabilidade ou fraqueza em algo ou alguém, mesmo que seja aparentemente forte ou invencível. A origem vem da mitologia grega, na qual Aquiles, um grande guerreiro, tinha o corpo quase todo invulnerável, exceto pelo calcanhar, que acabou sendo a causa de sua morte. Hoje, a expressão é usada metaforicamente para indicar uma fragilidade específica que pode levar à derrota ou ao fracasso.

Como é de seu conhecimento, recentemente foi promulgada a Lei 15.120/2025 (ver ao final do post), que altera a composição da Conitec, incluindo um representante de organizações da sociedade civil para supostamente (não está dado) ampliar a participação social nas decisões sobre tecnologias de saúde no SUS.

Dada a relação umbilical (inclusive financeira) da maioria das associações de pacientes (aqui entendidas como “organizações da sociedade civil”) com a indústria farmacêutica, a nova lei pode ensejar sérios conflitos de interesses, se o regimento interno da Conitec, que precisa estar pronto até 5 de outubro deste ano, for omisso ou displicente para com estas relações potencialmente perigosas.

Conflito de interesses: pode ser definido como uma situação em que interesses pessoais, financeiros, familiares, políticos ou outros influenciam ou têm o potencial de influenciar de forma inadequada o julgamento, a tomada de decisões ou o desempenho das obrigações de uma pessoa em qualquer contexto, seja ele profissional ou organizacional. Segundo a norma ISO 37001:2017 (antissuborno), conflito de interesses ocorre quando “negócios, finanças, famílias, interesses políticos ou pessoais podem interferir no julgamento de pessoas no exercício das suas obrigações para a organização”. Em um contexto mais amplo, isso significa priorizar interesses secundários (como ganhos pessoais) em detrimento dos objetivos primários da entidade ou organização envolvida. Essa definição aplica-se tanto ao setor privado quanto a qualquer situação em que decisões éticas e imparciais sejam esperadas.

Exemplos de Conflitos de Interesses

Judicialização da Saúde


A indústria farmacêutica pode motivar associações de pacientes a iniciarem processos judiciais para conseguir acesso a medicamentos não incluídos no Sistema Único de Saúde (SUS), mesmo quando existem opções alternativas ou quando o medicamento requerido não tem registro sanitário apropriado. Esta tática pode levar o sistema público a comprar medicamentos de alto custo, redirecionando recursos previamente planejados para outras necessidades de saúde pública. Em determinadas situações, firmas de advocacia ligadas a ONGs ou associações de pacientes conduzem essas demandas judiciais, frequentemente com o respaldo indireto da indústria farmacêutica. Isso gera um ciclo em que as necessidades comerciais prevalecem sobre as reais necessidades dos pacientes. .:.

Exigência de Incorporação através de Lobby


Entidades patrocinadas pelo setor industrial podem exercer pressão sobre entidades reguladoras, como a Conitec, para incluir medicamentos que não possuem provas suficientes de eficácia ou custo-benefício. Essa pressão pode ser exercida através de consultas ao público ou campanhas promovidas pelas associações. A judicialização pode ser empregada como um método alternativo para “forçar” a inclusão de medicamentos no SUS, sem a necessidade de seguir os critérios técnicos rigorosos definidos pela Conitec.

Financiamento Dependente das Associações


Numerosas associações de pacientes recebem subsídios consideráveis da indústria farmacêutica, o que pode prejudicar sua autonomia. Por exemplo, nos Estados Unidos, corporações farmacêuticas concederam bilhões de dólares em subsídios a associações, impactando suas posições políticas e ações de advocacy. No Brasil, existem indícios parecidos, apesar de menos documentados. Esta dependência financeira pode fazer com que as associações priorizem medicamentos específicos oferecidos pelas empresas patrocinadoras, mesmo que haja opções mais baratas ou eficientes no sistema público.

Incentivo à Pesquisa de Medicamentos Experimentais


Algumas entidades incentivam a utilização de medicamentos ainda em testes ou sem aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), frequentemente promovendo-os como “a única opção viável” para certas situações. Esta modalidade de campanha pode ser promovida pela própria indústria farmacêutica.

Movimentação do Plano Estratégico


A concentração em demandas legais ou lobby por medicamentos específicos pode desestabilizar o planejamento estratégico do SUS e da saúde suplementar, redirecionando recursos financeiros para satisfazer interesses comerciais ao invés das prioridades de saúde definidas.


Visando investigar o que poderiam ser políticas de conflitos de interesse recomendáveis para a Conitec que eventualmente subsidiassem o regimento interno que a mesma está obrigada a elaborar por força da Lei 15.120/2025, resolvi pesquisar como o National Institute of Health and Care Excellence lida com o tema. Afinal, o NICE costuma ser referência mundial em tudo que diga respeito à Avaliação de Tecnologias de Saúde.

Os critérios para definir e gerenciar conflitos de interesse nos comitês independentes do NICE são supostamente estabelecidos por uma política robusta e baseada em riscos. Abaixo estão os principais pontos:

Critérios para Identificar Conflitos de Interesse no NICE

  1. Declaração de Interesses:
    • Todos os participantes dos comitês independentes de Avaliação Tecnológica e Tecnologias Altamente Especializadas do NICE (incluindo os pacientes especialistas) devem declarar interesses financeiros e não financeiros relevantes, cobrindo os últimos 12 meses, além de interesses futuros conhecidos.
    • Interesses irrelevantes ou que não podem ser percebidos como relevantes não precisam ser declarados.
  2. Tipos de Interesses:
    • Interesses financeiros diretos: incluem pagamentos, ações, propriedade intelectual ou consultorias relacionadas ao tema em discussão.
    • Interesses financeiros indiretos: envolvem benefícios financeiros de terceiros próximos, como familiares.
    • Interesses não financeiros: Podem incluir reputação, publicações ou posições em organizações que influenciem o tema em análise.
  3. Especificidade dos Interesses:
    • Um interesse é considerado “específico” se estiver diretamente relacionado ao tema debatido no comitê. Interesses gerais no tópico não são considerados específicos.

Gestão de Conflitos

  1. Avaliação Baseada em Riscos:
    • Cada caso é analisado individualmente para determinar o risco percebido e a possível influência sobre a objetividade do participante.
    • Participantes com interesses financeiros diretos específicos geralmente são excluídos das discussões sobre o tema relevante.
  2. Equilíbrio de Expertise e Transparência:
    • O NICE busca garantir que os comitês tenham acesso à expertise necessária, enquanto minimizam riscos à objetividade percebida das decisões.
  3. Requisitos para Participação:
    • Especialistas indicados por organizações devem declarar financiamentos recebidos dessas organizações relacionados ao fabricante do medicamento em análise.
    • Pacientes especialistas têm um papel consultivo, mas não decisório, e seus interesses são tratados com proporcionalidade ao seu impacto nas reuniões.

Exclusões e Exceções

  • Membros que tenham interesses que os excluam de mais de 50% das discussões do comitê não podem ser nomeados.
  • Presidentes de comitês não podem ter interesses diretos relacionados aos produtos ou intervenções analisados, incluindo interesses financeiros ou indiretos relevantes.

O NICE também tem seu Calcanhar de Aquiles

Em 31/5/2023, o Programa de Saúde Global da ONG Transparência Internacional do Reino Unido fez publicar, no British Medical Journal (BMJ), artigo intitulado “Protegendo o NICE dos conflitos de interesse das associações de pacientes” [Safeguarding NICE from patient groups’ conflicts of interest].

Nele, é citado artigo publicado no jornal The Guardian que informa que o jornal The Observer teria conduzido investigação que revelou que a “Novo Nordisk pagou cerca de 167 milhões de reais (£ 21,7 milhões) a organizações e profissionais de saúde que, em alguns casos, elogiaram o tratamento antiobesidade Wegovy sem deixar claro seus vínculos com a empresa”.

A relação entre especialistas, pacientes e a Novo Nordisk no contexto do NICE (National Institute for Health and Care Excellence) foi marcada por controvérsias envolvendo conflitos de interesse. A Novo Nordisk investiu milhões em pagamentos a profissionais de saúde, organizações de obesidade e instituições acadêmicas, incluindo especialistas que contribuíram para as recomendações do NICE sobre o uso do medicamento Wegovy para perda de peso.

Alguns desses especialistas elogiaram publicamente o medicamento sem sempre divulgar seus vínculos financeiros com a empresa. Embora a Novo Nordisk afirme agir dentro dos padrões éticos e legais, críticos argumentam que tais práticas configuram uma campanha de relações públicas orquestrada para influenciar opiniões e decisões. O NICE declarou ter políticas robustas para gerenciar conflitos de interesse, mas casos de não divulgação de conflito de interesses foram identificados.

O artigo da Transparência Internacional UK no BMJ prossegue: Duas instituições de caridade sediadas no Reino Unido que apoiam pessoas com obesidade, a Association for the Study of Obesity e a Obesity UK, e seus especialistas e representantes de pacientes indicados, forneceram submissões e comentários à avaliação do NICE sobre a semaglutida [Wegovy] em favor do acesso expandido e do uso a longo prazo do medicamento. De acordo com as regras do NICE, os representantes de ambos os grupos de pacientes declararam pagamentos da Novo Nordisk no ano que antecedeu seu envolvimento. No entanto, o NICE considerou que estes não eram motivos para sua exclusão completa ou parcial.

Para o calcanhar de Aquiles do NICE, o artigo do BMJ propõe alguns remédios. A transparência na revelação de conflitos de interesse (COI) é essencial para garantir credibilidade nas contribuições de grupos de pacientes às avaliações do NICE, especialmente considerando sua dependência financeira da indústria farmacêutica. Embora a transparência seja importante, ela não elimina o impacto de financiamentos comerciais, e o NICE deveria ampliar o período de divulgação de conflitos de interesse para mais de 12 meses e considerar estratégias como plataformas online para coletar dados sistemáticos sobre os mesmos, seguindo o exemplo da Haute Autorité de Santé na França. Isso, na visão dos autores do artigo da BMJ, ajudaria a reduzir vieses, evitar a sobre-representação de grupos mais bem financiados e aumentar a participação de uma gama mais ampla de organizações e especialistas.

A conclusão do referido artigo não poderia ser mais direta:

“Contribuições de associações de pacientes e especialistas são importantes para capturar a experiência vivida de uma condição que nem sempre pode ser obtida a partir de ensaios clínicos. Mas fortes laços financeiros com a indústria representam o risco de minar sua credibilidade e imparcialidade. Para proteger as recomendações de reembolso (o equivalente às incorporações de tecnologias de saúde ao SUS pela Conitec) de interesses escusos, o NICE deve revisar suas políticas de divulgação e gestão de conflito de interesses”.


10 Perguntas Mais Comuns Sobre a Lei 15.120/2025

1. O que é a Lei 15.120/2025?

A Lei 15.120/2025 altera a composição da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), incluindo um representante de organizações da sociedade civil para ampliar a participação social nas decisões sobre tecnologias de saúde no SUS.

2. Quais mudanças foram feitas na composição da Conitec?

A lei adiciona um membro votante de uma organização da sociedade civil, que deve ser ativa há mais de dois anos em uma área relevante de saúde. Esse representante ocupará uma cadeira rotativa, dependendo da condição de saúde analisada.

3. Por que essa lei foi criada?

A inclusão de um representante da sociedade civil visa aumentar a transparência e a diversidade no processo decisório da Conitec, garantindo maior representatividade dos interesses sociais nas avaliações de tecnologias em saúde.

4. Quem pode ocupar a nova cadeira da sociedade civil na Conitec?

Organizações nacionais com pelo menos dois anos de atuação em áreas relacionadas à saúde e que estejam ligadas à condição específica sendo analisada pela Conitec podem ocupar a cadeira.

5. Como a Conitec implementará essas mudanças?

A Conitec tem 180 dias, a partir da publicação da lei, para ajustar seu regimento interno, definindo critérios para seleção do representante da sociedade civil e regras para o processo decisório.

6. Quando a Lei 15.120/2025 entra em vigor?

A lei entra em vigor 180 dias após sua publicação oficial, em 8 de abril de 2025. Portanto, será aplicada a partir de 5 de outubro de 2025.

7. Qual é a importância da cadeira rotativa para a sociedade civil?

A cadeira rotativa garante que o representante esteja alinhado com a condição de saúde específica em análise, promovendo contribuições especializadas e uma representação mais equitativa.

8. Como essa lei impacta as avaliações de tecnologias no SUS?

Com a inclusão das organizações da sociedade civil, espera-se que as decisões sobre incorporação ou exclusão de tecnologias no SUS reflitam melhor as necessidades sociais e opiniões especializadas.

9. Quais entidades já fazem parte da composição da Conitec?

A Conitec conta com representantes do Conselho Nacional de Saúde, Conselho Federal de Medicina, Associação Médica Brasileira e agora com um representante das organizações da sociedade civil.

10. Como essa lei se alinha aos objetivos maiores da saúde pública?

A Lei 15.120/2025 promove governança democrática na saúde ao incentivar a colaboração entre órgãos governamentais e sociedade civil, alinhando-se aos esforços para melhorar o SUS por meio de políticas inclusivas e participativas.


Crédito da imagem: A morte de Aquiles, 1630-1635 | Peter Paul Rubens (Reprodução)

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Cláudio Cordovil Pesquisador em Saúde Pública
Jornalista profissional. Servidor Público. Pesquisador em Saúde Pública (ENSP/Fiocruz). Especializado em Doenças Raras, Saúde Pública e Farmacoeconomia . Mestre e Doutor em Comunicação e Cultura (Eco/UFRJ). Prêmio José Reis de Jornalismo Científico concedido pelo CNPq.

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