Cláudio Cordovil

PL 84/2025 propõe prioridade a ONGs de doenças raras, mas há risco de captura institucional

“Entidades que salvam vidas não podem ficar em último lugar!” — foi com esse apelo que a deputada federal Rosangela Moro divulgou ontem em suas redes sociais (20/6) o Projeto de Lei 84/2025, que na realidade não é novo: foi apresentado à Câmara dos Deputados em 3/2/2025.

O texto do projeto propõe conceder prioridade legal automática a organizações da sociedade civil (OSCs) que atuam com pessoas com deficiência e doenças raras nas parcerias com o poder público.

Sou pesquisador em saúde pública com foco em doenças raras (Fiocruz) e acompanho, há cerca de 18 anos, o relacionamento entre associações de pacientes, poder público e indústria farmacêutica. À luz dessa trajetória, examinei o PL 84/2025.

A visibilidade para essas condições é indispensável. Contudo, sem dispositivos de transparência, avaliação de impacto e gestão de conflitos de interesse, o PL abre espaço para práticas de lobby desregulado, incentiva rent-seeking e eleva o risco de captura do regulador.

Canal preferencial sem contrapartidas

O PL reconhece essas OSCs como prioritárias (art. 2º, I, d) e determina que apareçam em primeiro lugar em editais, convênios e emendas (art. 6º, X). Não há, entretanto, exigência de indicadores de desempenho, nem obrigação de divulgar financiadores ou conflitos de interesse — pontos críticos quando sabemos, por literatura robusta, que diversas associações dependem financeiramente de laboratórios que comercializam terapias de alto custo.


Projeto de lei propõe prioridade automática a ONGs da área, mas desconsidera riscos de lobby, rent seeking e judicialização sem controle

Onde vejo os principais riscos

Rent-seeking: ao instituir uma “fila VIP” para verbas públicas, o PL cria incentivo para que surjam entidades cujo propósito dominante seja captar recursos, sem necessariamente entregar resultados proporcionais em saúde.

Dependência de trajetória (path dependency): fluxos de financiamento privilegiado, uma vez consagrados em lei, tendem a consolidar grupos com poder de veto — qualquer ajuste posterior se torna politicamente custoso.

Assimetria de informação: sem transparência financeira, o Estado fica às cegas diante de possíveis agendas privadas que movem essas organizações.

Judicialização ampliada: com legitimidade reforçada, as entidades beneficiadas terão mais força para pleitear terapias de altíssimo custo ainda sem avaliação de custo-efetividade, pressionando o orçamento do SUS.

Salvaguardas que considero indispensáveis

  1. Divulgação anual detalhada de fontes de financiamento e percentuais vindos da iniciativa privada, nos moldes do “Sunshine Act” norte-americano.
  2. Metas objetivas de impacto em saúde como condição para manter a prioridade.
  3. Avaliação independente de cada convênio, envolvendo órgãos de controle, conselhos de saúde e academia.
  4. Revisão ex-post de custo-efetividade antes da renovação de quaisquer parcerias.

Quem convive com doenças raras precisa, sim, de políticas diferenciadas e de organizações fortes. Mas também precisa de governança sólida. Sem ajustes, o PL 84/2025 pode transformar uma intenção legítima em um atalho para captura de recursos públicos por interesses privados. Transparência, monitoramento e responsabilidade fiscal são essenciais para que a prioridade legal se converta em benefícios reais — e não em uma filantropia potencialmente instrumentalizada.

Doenças raras demandam atenção específica, políticas públicas robustas e entidades representativas fortes. Mas força institucional sem contrapesos, especialmente em setores de alto custo e baixo controle social, pode transformar uma boa intenção em um dispositivo de captura.

A sociedade deve, sim, pressionar pelo avanço de políticas para doenças raras. Mas deve exigir, também, que esse avanço venha com transparência, avaliação e responsabilidade fiscal — para que o direito à saúde não seja mais um território ocupado por interesses privados travestidos de causa pública.


Nota de responsabilidade:
Este texto analisa a proposta legislativa com base em documentos públicos, literatura científica, evidências disponíveis e expertise de seu autor. Não se imputa má-fé a nenhum dos proponentes. O objetivo é qualificar o debate e alertar para os riscos estruturais envolvidos.

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Cláudio Cordovil Pesquisador em Saúde Pública
Jornalista profissional. Servidor Público. Pesquisador em Saúde Pública (ENSP/Fiocruz). Especializado em Doenças Raras, Saúde Pública e Farmacoeconomia . Mestre e Doutor em Comunicação e Cultura (Eco/UFRJ). Prêmio José Reis de Jornalismo Científico concedido pelo CNPq.

6 comentários em “PL 84/2025 propõe prioridade a ONGs de doenças raras, mas há risco de captura institucional”

    • Obrigado, Fábio! Estamos atentos em nome do interesse público. O risco de captura institucional neste caso é bastante real. Necessário que os pacientes e as representações progressistas no parlamento reajam a possíveis descalabros.

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    • Obrigado, Araciel! Como dizia o juiz da Suprema Corte dos EUA, Louis Brandeis, “o sol é o melhor desinfetante”. O dito popular enfatiza que a luz do sol, assim como a exposição pública de informações, pode ajudar a revelar e corrigir problemas que poderiam passar despercebidos em ambientes fechados e obscuros.

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