FILIPE OLIVEIRA
[su_dropcap]E[/su_dropcap]xistem frases que nós que temos uma deficiência ouvimos o tempo todo sem notar o quanto elas seriam incomuns, na verdade grosseiras, se fossem dirigidas para outros.
Não me refiro aos questionamentos diários sobre de onde vem nossa deficiência, se foi por doença ou acidente, se a gente não enxerga nadinha de nada mesmo, se sonha de noite ou como sabe se alguém é bonito sem ver.
São inúmeras as perguntas curiosas que, a depender de como e quando são feitas e também de quem as responde, podem ser entendidas como naturais e saudáveis ou como invasivas e irritantes. Infelizmente não tenho receita ou manual de instruções sobre como conversar com um cego.
Há poucos dias descobri que muito mais significados estão escondidos em uma fala tão frequente quanto as anteriores e que tem como propósito demonstrar empatia, vontade de aprender com o outro e construir laços.
Quantas vezes, caro leitor, alguém lhe disse que iria se esforçar para aprender a lidar com você?
Se você tem uma deficiência, provavelmente uma centena de vezes. Ouviu coisas assim quando foi se matricular em um curso, passou por uma entrevista de emprego, foi a uma agência de viagens, marcou um encontro num aplicativo de namoro. Isso se tiver dado sorte, pois também há risco de terem dito que não saberiam como agir na situação e fechado a porta, sugerindo que procurasse um especialista em pessoas como você.
Por outro lado, caso não conviva com uma deficiência, apostaria que nunca escutou nada parecido. Mais do que isso, ficaria muito ofendido se alguém tentasse demonstrar simpatia dessa forma, seja você homem ou mulher, rico ou pobre, negro ou branco, jovem ou velho. Dirá, todos precisam me aceitar assim como sou e saber me tratar como um igual não é mais do que a obrigação de qualquer pessoa.
Por que as pessoas com deficiência formam um grupo sobre o qual se pode admitir com tranquilidade que não se sabe lidar, enquanto os demais são entendidos como consumidores, profissionais, alunos, amigos, e companheiros em potencial?
A exclusão que as pessoas com deficiência sempre vivenciaram na educação, na vida social e no trabalho nos levou a uma situação em que nós e as pessoas mais bem intencionadas, dispostas a iniciar uma relação conosco, nem percebem o quanto é sintomático aceitarmos que ainda estamos tão distantes que, não havendo um esforço para que aprendamos uns com os outros, nossas deficiências serão uma muralha intransponível para que haja alguma troca entre nós.
Há especificidades no modo como nós que temos uma deficiência nos comunicamos, aprendemos, nos locomovemos, nos divertimos. A maioria das pessoas não sabe muito a respeito e realmente pode ser preciso que se aprenda algo no primeiro contato, que haja um aviso de que a forma certa de conduzir é deixando o cego segurar no cotovelo de quem está indicando o caminho. E estamos o tempo todo torcendo para encontrar pessoas receptivas a nosso modo de ser.
Mas porque conviver com alguém com deficiência é visto com frequência como um gesto humanitário de algumas pessoas de bom coração e não algo que deveria ser natural para todos? Penso que seria muito melhor um mundo em que as pessoas conhecessem e abraçassem essas diferenças, se compreendessem e convivessem com naturalidade.
Em vez disso, o cego que chega a um novo espaço costuma ser a novidade que desestabiliza. É a pessoa que ninguém tinha se preparado para receber na festa, para quem vão procurar uma cadeira no cantinho em vez de chamar para a pista. Até que um dia vem alguém disposto a aprender a lidar com a gente, a ensinar os passos da dança de mãos dadas, e ficamos imensamente gratos por terem se lembrado de nós pelo tempo que dura uma música.
Quando o humor está melhor, olho a questão de cabeça para baixo. Uma vez uma pessoa da família decidiu que iria assumir o milenar trabalho do Cupido e encontrar uma namorada para mim. A primeira qualidade que enumerou sobre a pretendente imaginária é que a moça não deveria ter preconceito. Ótimo. Então a deficiência é um repelente natural de gente preconceituosa. Um grande privilégio, eu diria.
Só me pergunto o motivo de as pessoas que não tem deficiência aceitarem se relacionar com alguém intolerante, que não consegue se imaginar convivendo com o diferente. Acordar de manhã ao lado de quem possui uma visão de mundo tão pobre me parece infinitas vezes mais difícil do que estar com alguém que não enxerga.
Pensando bem, tem milhares de coisas que podem ser mais difíceis de lidar do que a cegueira. Imagina como seria lidar com alguém desonesto? Eu precisaria de muita meditação e empatia para me adaptar a isso.
Como vocês fazem para lidar com pessoas que se acham superiores às demais? Como lidam com quem é uma enciclopédia de verdades aprendidas no WhatsApp?
Tem gente que tem muita facilidade para lidar com quem fala sem parar. Para mim é ótimo, prefiro muito ficar só escutando, o que é um grande desafio para os mais calados.
Como a gente lida com a pessoa que está sempre com os sentimentos à flor da pele, caminha na rua com o cachorro como se fosse a experiência mais transcendental que se pode viver em um dia de inverno e faz todas as ações de quem está a sua volta parecerem medíocres? como se faz para lidar com a pessoa que se desencantou com a vida e só quer ficar em silêncio no seu canto? Quem pode me dar uma ajuda para me relacionar com pessoas muito cultas que intimidam por sua inteligência?
Parece que toda essa turma também veio sem receita ou manual de instrução. Não será fácil, mas prometo me esforçar bastante para aprender a lidar com todos vocês. Tenham paciência e me avisem se eu fizer algo errado. E já antecipo as desculpas pela minha falta de experiência.
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Filipe Oliveira é jornalista e músico. Vem perdendo a visão aos poucos.
Reproduzido de Folha de S. Paulo, 27/6/2021