Lucio Luzzatto e colaboradores
Publicado originalmente na revista The Lancet (20.7.2018)
Contam-se nos dedos os casos de uma única medida legislativa que tenha mudado tão radicalmente a política industrial na indústria farmacêutica como a Lei de Medicamentos Órfãos, assinada nos EUA em 1983.
A Lei foi elaborada para facilitar o desenvolvimento de medicamentos para doenças raras e outras condições de saúde (1) e os incentivos propiciados pela Lei resultaram na aprovação de 575 medicamentos e produtos biológicos para doenças raras entre 1983 e 2017 pela Food and Drug Administration (agência que controla medicamentos e alimentos nos EUA) (2). Um verdadeiro sucesso. Em 2000, a Comissão Europeia aprovou legislação semelhante para medicamentos órfãos (MOs). De fato, as doenças, e não os medicamentos, são órfãs porque todas estes medicamentos são muito caros, (3) nota destoante nesta história de sucesso .
Embora estejamos lidando com doenças raras, o número crescente de novos MOs introduzidos no mercado a cada ano está começando a ameaçar a sustentabilidade dos sistemas de saúde (5,6). As implicações socioeconômicas, éticas e legais desse estado de coisas já foram analisadas extensivamente (7). Nós discutimos anteriormente estas implicações (8), e aqui nos concentraremos em possíveis ações corretivas. Embora o foco aqui seja em MOs, nossas recomendações são aplicáveis a outros medicamentos.
O panorama
Existem mais de 7 mil doenças raras, de acordo com as contagens oficiais (9,10). No entanto, o número varia conforme as definições empregadas.
O câncer, ainda que seja uma das causas mais comuns de morte como um todo, é aqui um bom exemplo. Muitos tipos de câncer já são qualificados como doenças raras (por exemplo, o osteossarcoma) ou mesmo doenças ultra-raras (por exemplo, o melanoma uveal) (11,12).
Através de análise molecular, grande heterogeneidade tem sido detectada em todos os cânceres comuns; muitos subtipos (por exemplo, adenocarcinoma do pulmão com um rearranjo de ALK) (13) são, portanto, doenças raras. A chamada “orfanização de distúrbios comuns”, que é um resultado direto da era da genômica, aumenta o alcance da medicina de precisão e espera-se que o amplie ainda mais. Atualmente, 40% dos medicamentos com status de MOs são aprovados para tipos específicos de câncer (14).
O princípio da concorrência no mercado livre é distorcido no caso dos MOs. Primeiramente, muitas vezes apenas um medicamento para determinada doença está disponível no mercado, dando origem a uma situação de monopólio. Em segundo lugar, em alguns casos, vários MOs estão disponíveis para a mesma doença; por exemplo, três medicamentos são licenciados para o tratamento da doença de Gaucher (imiglucerase, velaglucerase alfa e taliglucerase alfa) (15). Nenhuma evidência favorece mais este ou aquele medicamento neste caso, e cada um deles custa cerca de 200 mil dólares por paciente/ano. Para um observador externo, isso se assemelha a um cartel.
Valor, custo e preço de medicamentos
O preço dos medicamentos geralmente faz lembrar-nos dos preços dos bens de consumo, em que a prática costuma ser estabelecer um preço tão alto quanto o mercado permitir. No entanto, é absurdo considerar um paciente com uma doença grave e que o acometerá por toda a vida como um consumidor que avalia, por exemplo, que carro deve comprar.
Levar-se em conta o valor de um medicamento e o custo de produção pareceria mais apropriado; estas duas abordagens não são conflitantes.
Em alguns casos, um MO demonstrou ser de alto benefício para os pacientes antes do licenciamento; mas em outros casos, os MOs foram aprovados com base em desfechos substitutos.
Uma tentativa de avaliar o valor de um medicamento tem sido o emprego do limiar de custo efetividade incremental, adotado no Reino Unido pelo (16,17). Essa abordagem é inovadora, mas tem limitações. Na União Européia (UE), a abordagem dos caminhos adaptativos (adaptive pathways) tem sido explorada, mas não (ainda) oficialmente adotada (18). Dada a multiplicidade de doenças raras com etiologias e fisiopatologias distintas, as diferentes modalidades e graus de eficácia dos MOs não são surpreendentes. As melhores ferramentas para avaliar o valor destes medicamentos na vida real são registros (registries) robustos de pacientes, projetados para coletar dados longitudinais confiáveis relatados por médicos, independentemente da indústria.
Os registros não pretendem substituir os testes apropriados de pós-licenciamento; em vez disso, por meio de colaboração transparente já em um estágio inicial entre pacientes, médicos e governos (incluindo órgãos de avaliação de tecnologia em saúde), os dados do registro podem definir o valor real de um medicamento e seu uso adequado.
Em 2014, em uma mudança marcante na prática anterior, o Senado dos EUA solicitou informações sobre custos de desenvolvimento e muitos outros detalhes a respeito do sofosbuvir, uma droga para tratamento radical da infecção pelo vírus da hepatite C (19).
Cada vez mais governos de países membros da União Européia solicitam que a indústria divulgue informações sobre os custos incorridos durante o desenvolvimento de medicamentos que possam justificar seus preços; mas sem obrigações legais de fornecer tais informações, esses pedidos têm sido amplamente rejeitados.
Os custos de produção incluem matérias-primas, tecnologia química ou biotecnologia para produção, controles de qualidade, investimentos em P&D e uma margem razoável de lucro (20). Deve-se considerar também que muitos medicamentos nunca chegam ao mercado, o que representa prejuízo para a indústria. No entanto, os custos de P&D podem ser reduzidos quando a pesquisa que sustenta a descoberta de um novo medicamento é feita em grande parte por pesquisadores acadêmicos, principalmente com financiamento público (21).
O caso da hidroxiuréia é um exemplo importante e atual do que pode acontecer quando uma droga antiga é reaproveitada (repurposed).
Sintetizada pela primeira vez em 1869, a hidroxiuréia é usada há décadas em pacientes com distúrbios mieloproliferativos e agora também é indicada para a doença falciforme (22,23). Na edição de 2017 do British National Formulary (a ‘Relação Nacional de Medicamentos’ Britânica), um tipo de hidroxiuréia para distúrbios mieloproliferativos está listada a 0,24 libras esterlinas/g, e outro tipo de hidroxiuréia para doença falciforme é listada em 16,7 libras esterlinas/g. O senso comum diria que há algo de estranho neste caso.
Envolvimento das partes interessadas
O empoderamento do paciente tem sido um desenvolvimento positivo na medicina contemporânea, particularmente no que diz respeito a pacientes que estão mais bem informados sobre suas doenças e sobre opções terapêuticas. Compreensivelmente, os pacientes com doenças raras muitas vezes se sentem negligenciados, a despeito de poderem ter contribuído ativamente para o desenvolvimento de medicamentos.
Este foi o caso do ivacaftor, cujos testes clínicos foram patrocinados pela Fundação Fibrose Cística (24) e realizados com pacientes por ela recrutados.
A necessidade de mudança
Os crescentes custos dos medicamentos aumentaram as preocupações nos serviços de saúde de todo o mundo (25) e medidas corretivas foram introduzidas ou tentadas. Essas medidas incluem restrições sobre indicações para os medicamentos, compartilhamento de riscos, pagamentos relacionados ao desempenho dos mesmos e monitoramento de seu uso. Todas essas tentativas devem ter algum mérito porque ajudaram a limitar o gasto farmacêutico. No entanto, eles apenas arranham a superfície do problema.
Dado o sucesso da legislação sobre medicamentos órfãos, estamos convencidos de que os incentivos devem continuar (e talvez novos incentivos devam ser acrescentados) (26) para que a indústria farmacêutica não desista de desenvolvê-los. Devemos fazer tudo o que pudermos para incentivar a inovação, em vez de sufocá-la.
Precisamos também conciliar os orçamentos finitos de saúde com o tratamento ideal, que ainda não é acessível a todos os pacientes no momento (27). Pensamos que o preço proposto pela indústria deve estar sujeito a escrutínio e regulamentação . Em The price of inequality [O preço da desigualdade], o Nobel de Economia, Joseph Stiglitz (28), afirmou que “os preços dos medicamentos são muito mais altos do que o custo de produção pago pelas empresas farmacêuticas … a tal ponto que agora gastam mais em marketing do que em pesquisa”.
Os preços devem ser adaptados à maturidade do produto. Enquanto o medicamento precisar de mais pesquisas, o acesso antecipado ao mercado deve estar condicionado não apenas a um sistema de avaliação robusto, mas a um preço reduzido.
O preço pode ser ajustado posteriormente, após o seu uso ter sido otimizado. Quando uma mesma droga se torna aprovada para outra doença, o preço deve sofrer redução, na medida que o mercado dessa droga aumenta, especialmente quando um MO encontra uma nova indicação para uma doença prevalente (e não rara).
A Agência Europeia de Medicamentos (EMA) ainda não estabeleceu, nem sequer negociou, preços porque os Estados-Membros da União Européia preferiram manter a sua soberania nesta matéria. Os Estados-Membros podem ter razões válidas para isso, mas isso significa que a Europa abandona o seu poder de barganha ao deixar de se aproveitar do fato de, com 500 milhões de habitantes, ser agora o maior cliente individual de qualquer novo medicamento.
Alguns países europeus se uniram para as negociações de preço de MOs, e a indústria tem mostrado interesse nesse movimento (29,30). No entanto, a União Européia está agora abrindo mão da oportunidade de negociar preços de medicamentos a partir da posição política vantajosa que possui. Mesmo uma única redução de preço visível obtida por meio dessa abordagem ajudaria muito a convencer os Estados-membros da União Européia de que a soberania é desvantajosa nesse contexto.
Sentimos que há necessidade de nova legislação. Nós, autores deste artigo, não temos mandato em órgãos oficiais e nosso status é de profissionais preocupados com este estado de coisas. Com base nisso, temos três recomendações principais para o cálculo de preços (Tabela 2) . Seguir essas recomendações seria um passo lógico para recompor o equilíbrio entre o lucro que a indústria naturalmente espera obter e os custos que os serviços de saúde podem suportar.
Não é do interesse da indústria que a aquisição de MOs seja suspensa pelos serviços de saúde, muito menos que eles entrem em colapso.
Mais importante ainda, é um dever moral dos governos e profissionais conciliar pesquisas dispendiosas que levem a novos tratamentos com nossa capacidade de realmente entregar esses tratamentos aos pacientes afetados.
*Publicado na Lancet online em 20 de julho de 2018.
Obrigada pela publicacao do artigo e por trazer o assunto a discussao.