MARCOS PATULLO
O tema de maior repercussão dentre as questões regulatórias da saúde suplementar no Brasil foi o debate sobre a taxatividade do rol da ANS – oficialmente Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da Agência Nacional da Saúde Suplementar.
Não se trata, propriamente, de um tema novo, uma vez que a grande maioria das ações judiciais que versam sobre negativas abusivas de cobertura assistencial por parte das operadoras possui como fundamento a ausência de previsão do tratamento na referida lista, ou então a inadequação da prescrição médica às Diretrizes de Utilização (DUT) estabelecidas pela agência. Entretanto, o debate foi amplificado em razão do julgamento dos Embargos de Divergência 1.889.704-SP e 1886929-SP, nos quais a 2.ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por maioria, fixou entendimento pela taxatividade mitigada do rol da ANS, ou seja, estabeleceu a taxatividade como regra, mas fixou critérios para a cobertura de tratamento que não estejam previstos no rol.
A decisão do STJ, no entanto, não representa o fim do debate sobre a matéria, seja no campo jurídico, seja no campo político. Com efeito, embora o julgamento tenha ocorrido no início de junho, o acórdão apenas foi publicado no início de agosto e, certamente, será objeto de Embargos de Declaração. Posteriormente, ainda está sujeito à interposição de Recurso Extraordinário, o que devolverá a decisão sobre o mérito da questão para o Supremo Tribunal Federal (STF).
Aliás, independente da eventual interposição de Recurso Extraordinário, já existem no STF cinco ações, sendo três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) e duas ações de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) que questionam a constitucionalidade de dispositivos da Lei dos Planos de Saúde (Lei 9.656/98), da lei que criou e regulamenta a ANS (Lei 9.961/2000) e da Resolução Normativa nº 465/2021 (que regulamenta o rol da ANS), as quais estão sob relatoria do ministro Luís Roberto Barroso. O magistrado, inclusive, já convocou uma Audiência Pública, que será realizada nos dias 26 e 27 de setembro, para ouvir especialistas sobre a matéria.
No campo político, a reação à decisão do STJ foi imediata, com a votação e aprovação em regime de urgência pela Câmara dos Deputados do PL 2033/2022, que possui como objeto a modificação da Lei dos Planos de Saúde para estabelecer “hipóteses de cobertura de exames ou tratamentos de saúde que não estão incluídos no rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar”. Na justificativa da proposta consta que o projeto de lei foi fruto da mobilização da sociedade civil, de especialistas da área médica e de usuários da saúde suplementar para possibilitar a continuidade de tratamentos de saúde que poderiam ser excluídos com o novo entendimento adotado pelo STJ.
O PL 2033 traz essencialmente três alterações significativas na Lei dos Planos de Saúde. Em primeiro lugar, o artigo 1º da lei é alterado para elucidar que as operadoras de planos de saúde são regidas, simultaneamente, tanto pela própria Lei 9.656/98 (que é o marco regulatório da saúde suplementar no Brasil), como também por leis específicas e pelo próprio Código de Defesa do Consumidor (CDC). Essa alteração é relevante porque, atualmente, a Lei dos Planos de Saúde faz menção ao CDC apenas no artigo 35-G e apenas como aplicação subsidiária para a regulamentação da relação jurídica estabelecida entre os usuários e as operadoras. Assim, o PL 2033/2022 reforça o caráter consumerista desta relação, em consonância inclusive com a jurisprudência do STJ, a teor do disposto na Súmula 608 da corte.
As outras duas importantes alterações do PL 2033 foram realizadas na redação do §4.º, do artigo 10 da Lei 9.656/98, com a introdução dos §§12 e 13 no mesmo artigo, para disciplinar exatamente as hipóteses de cobertura de procedimentos que não estão listados no rol da ANS. Com a redação proposta, o rol da ANS será reforçado como uma referência para “cobertura básica” na saúde suplementar, de modo que não esgota a obrigação de cobertura assistencial das operadoras de planos de saúde.
Pelo contrário, o §13 que o PL introduz no artigo 10 da Lei dos Planos dispõe que na hipótese de prescrição de tratamento por “médico ou odontólogo assistente” que não esteja na lista (rol da ANS), a cobertura “deverá ser autorizada pela operadora de planos de assistência à saúde”, desde que cumpridos os requisitos estabelecidos nos incisos I e II do mesmo parágrafo. Essa é a grande diferença entre a decisão proferida pelo STJ nos Embargos de Divergência 1.889.704-SP e 1886929-SP e a disciplina proposta pelo PL 2033: enquanto a decisão do STJ coloca como pressuposto para a cobertura fora do rol da ANS que não haja substituto terapêutico para o tratamento prescrito ao paciente ou que sejam esgotados os procedimentos previstos expressamente no rol, o PL 2033 não faz a mesma exigência.
A última alteração importante que o PL 2033 traz consiste na disciplina dos requisitos que devem ser atendidos para a cobertura de tratamentos não listados no rol da ANS. A esse respeito, faz-se necessário destacar que o PL estabeleceu requisitos muito próximos dos fixados pelo STJ, fazendo referência expressa à necessidade do tratamento ou procedimento não ser experimental, ou seja, ter comprovação da sua eficácia à luz da medicina baseada em evidências, bem como a necessidade de existir recomendações de órgãos técnicos nacionais (Conitec ou Anvisa) ou estrangeiros (Food and Drugs Administration, União Europeia de Saúde, Scottish Medicines Consortium; National Institute for Health and Care Excellence; Canada’s Drug and Health Technology Assessment; Parmaceutical Benefits Scheme; e Medical Services Advisory Committee).
Fica evidente no PL 2033 a preocupação do legislador em utilizar critérios objetivos para a cobertura de procedimentos que não estejam previstos no rol da ANS, ancorados na medicina baseada em evidências, bem como em seguir as recomendações de órgãos técnicos renomados (nacionais e estrangeiros), que cumprem rigorosos critérios de Avaliações de Tecnologias em Saúde (ATS).
Em que pese o rigor utilizado pelo legislador, o PL 2033 foi objeto de uma crítica por parte da ANS. Através de nota, a agência dá a entender que os critérios estabelecidos pelo projeto de lei poderiam gerar incertezas tanto com relação à segurança e efetividade dos tratamentos, quanto ao impacto econômico deles para a saúde suplementar.
Trata-se de crítica, no entanto, que fica apenas no campo da retórica, uma vez que a agência não apresentou nenhum estudo que demonstre os impactos regulatórios e orçamentários, demonstrando que as alterações promovidas pelo projeto de fato tratariam as consequências econômicas e assistenciais alegadas na nota. Também não demonstra, com relação à eficácia e segurança dos procedimentos e tratamentos, a superioridade da metodologia utilizada pela ANS para a atualização do rol em detrimento daquelas utilizadas pelas agências nacionais e estrangeiras citadas no projeto de lei.
Desta maneira, o debate sobre o tema ainda está longe de terminar. A decisão do STJ sobre a taxatividade do rol da ANS constitui apenas um capítulo nesta discussão, que ainda continuará no campo jurídico, com o inevitável pronunciamento do STF sobre a matéria, e político, com a apreciação do PL 2033/2022 pelo Senado.
MARCOS PATULLO é Especialista em direito à saúde e sócio do escritório Vilhena Silva Advogados
Artigo originalmente publicado no JOTA em 29/08/2022