Cláudio Cordovil

Muito além do SUS! Desafios do cuidado em doenças raras (Parte I)

 

Pixabay

A leitura da Recomendação Ad-Hoc elaborada pelo Conselho de Ética da Alemanha, intitulada O desafio de prestar cuidados em doenças raras dá o que pensar. Ninguém ignora que a Alemanha é uma potência econômica, locomotiva da União Européia. Mas o que você talvez não saiba é que os problemas enfrentados pelos pacientes alemães são muito semelhantes àqueles vividos por nossos compatriotas, a julgar pelo relatório, quando o assunto é provisão de cuidado em doenças raras. Estima-se que a Alemanha possua 4 milhões de pessoas vivendo com doenças taras; no Brasil, fala-se em 15 milhões.

Nesta  série de quatro posts , vou resumir e comentar o documento para você. Hoje trataremos dos aspectos éticos envolvidos com a prestação do cuidado em doenças raras. Ao final da série, divulgarei links recomendados para você se aprofundar no assunto.

Ó que é o Conselho de Ética da Alemanha?
O Conselho de Ética da Alemanha trata de questões que digam respeito à ética, sociedade, ciência, medicina e direito e as prováveis consequências para o indivíduo e a sociedade das relações entre pesquisa e desenvolvimento, em particular no campo das ciências da vida e sua aplicação na humanidade. É órgão consultivo do governo e do parlamento alemães.

Nas próximas semanas, você terá as seguintes seções deste post:

  • Estrátégias de redução da vulnerabilidade de pessoas que vivem com doenças raras (Parte 2)
  • A expectativa com medicamentos (Parte 3)
  • Recomendações do Conselho de Ética da Alemanha (Parte 4)

É claro que, quando falamos de Alemanha, estamos falando de uma sociedade plenamente desenvolvida, com um conceito muito avançado de justiça e solidariedade social. E nisso o Brasil fica a dever. É um dos campeões da desigualdade. Mas os desafios de se oferecer cuidado às pessoas com doenças raras não se resumem aos recursos minguantes para provê-lo. Há  sérios problemas estruturais  que estão longe de ser privilégio do SUS.

Doença rara é um grave problema global em Saúde Pública, e muito recente, em termos de sua apropriação por políticas públicas. Nos EUA, na década de 1980; na União Européia a partir de 2000; e no Brasil, a partir de 2014. Sim, a discussão sobre doença rara no País se institucionalizou há quase seis anos atrás com a publicação da Portaria 199/2014!

A complexidade no atendimento a doentes raros é inequívoca, e nesse ponto o nosso mantra nacional “Saúde é direito de todos” acaba nos hipnotizando e turvando nossa mente sobre o real sentido da expressão.

Saúde é direito de todos no Brasil! Ninguém duvida disso! Mas não está escrito em lugar algum que saúde é ter medicamento; apesar de ele ser um dos elementos centrais da realização do direito à saúde.

Está é uma compreensão equivocada de muitos doentes raros e seus familiares. Mas também da sociedade como um todo. As pessoas comuns gostam de acreditar que ter saúde é ter hospital, quando na verdade, saúde é resultante de inúmeras determinações sociais, que estão fora do domínio convencional da mesma, como educação, mobilidade, saneamento etc. É claro que temos que ter hospitais e centros de referência! Mas eles deveriam se inscrever no âmbito de um sistema, ser parte de um sistema, e não a essência de uma estrutura dedicada à promoção da saúde.

O medicamento é apenas uma dimensão dos cuidados em saúde! Mas como outros aspectos da questão (como prevenção e diagnóstico) são difíceis de se conceber para estes doentes, eles irão pressionar o SUS e reivindicar medicamento. Lógico! Resultado: altos níveis de judicialização da saúde, que muitas vezes é a única estratégia de sobrevivência para um dos grupos mais vulneráveis da sociedade na atualidade. Já foram os portadores do virus da Aids. Ainda são os usuários de crack.

Nenhum sistema de saúde pode se basear na farmaceuticalização da saúde pública! Farmaceuticalização pode ser definida como “a tradução ou a transformação das condições humanas, recursos e capacidades em oportunidades de intervenção farmacêutica”. Mas acredito que é precipitado e desonesto intelectualmente se falar em farmaceuticalização das doenças raras.

Se há farmaceuticalização entre os raros, no Brasil ou no mundo, ela se dá em parte por causa  da limitação estrutural de sistemas de saúde . Afinal, eles não foram concebidos originalmente para tratar de doenças raras (e nem poderiam ser!), e sim enfermidades comuns.

Os agentes econômicos viram aí uma oportunidade e a exploraram. Alguma novidade? Fazem isso com medicamentos; fazem isso com batatas fritas. Pode até se discutir a moralidade de se patentear medicamentos, mas isto é papo pra outro post. Resumindo a opereta: só recentemente se começa a discutir itinerários terapêuticos para essa classe de pacientes, mesmo na Europa.

Da mesma forma, é rematada tolice exigir que doentes raros demandem atenção primária em saúde, quando mesmo os sistemas mais avançados do mundo custaram a fazer seu dever-de-casa com relação aos raros nesse campo.

Trabalho educativo junto aos pacientes, por parte do governo (mas sem cartas na manga e proselitismo politiqueiro), deveria ser desenvolvido para mostrá-los que existem outras coisas em jogo no tratamento das doenças raras, além dos medicamentos.

Mas a relação entre o governo e pacientes hoje não é das melhores. Atualmente, é forçoso reconhecer que quem educa pacientes é a indústria farmacêutica. Nesse sentido, apenas ocupa um espaço vazio. E naturalmente ela não comercializa “itinerários terapêuticos” ou “linhas de cuidado”, mas sim medicamentos.

Não virá da indústria a educação do paciente para a reivindicação por atenção básica e/ou multidisciplinar às doenças raras no SUS. É uma verdade elementar que deveria ser compreendida por gestores de saúde, antes de criminalizarem pacientes ou emitirem juizos infundados (e não comprovados empiricamente) sobre suas eventuais relações escusas com a indústria.

Preços exorbitantes

O negócio é um pouco indecente de fato. Reina a opacidade absoluta sobre a razão dos preços muitas vezes exorbitantes dos medicamentos para doenças raras. A Organização Européia para Doenças Raras (Eurordis) tem criticado a indústria farmacêutica nesse sentido. A entidade reivindica que os preços desses medicamentos sejam reduzidos, em um terço a um quinto dos atualmente praticados, até 2025, segundo o documento alemão. Já falamos sobre isso aqui neste post.

Desconheço qualquer movimento de crítica ou questionamento dos preços destes medicamentos por organizações de pacientes nacionais. Nesse ponto, não agem como cidadãos, mas sim como consumidores ou clientes. Mas a  agenda do SUS é uma agenda de cidadania, não de consumidor. Pegaria bem se as associações de pacientes começassem a discutir esta situação alarmante dos preços. O SUS é direito de todos, ok! Mas direitos pressupõem deveres. De cidadania! E um deles é questionar a opacidade na questão dos preços, muitas vezes abusivos.

De fato, a médio prazo tal ênfase em medicamentos de alto custo, com sua batelada de novos produtos lançados a cada ano, pode comprometer sim a saúde de muitos sistemas públicos em todo o planeta! Quanto ao SUS nem se fala, visto que ele já é estropiado por subfinanciamento crônico desde sua origem, segundo seus principais analistas

Antes que você avance na leitura, recomendo que assista o vídeo abaixo, se você ainda não conhece a Bioética. Será fundamental compreender este conceito para poder avançar conosco neste e nos próximos posts desta série.

 

Mas vamos lá! Agora vou resumir alguns pontos interessantíssimos desse relatório já mencionado. É uma maneira de a gente pegar um elevador panorâmico que nos permita olhar para a floresta e não  mais somente para a árvore ‘que dá medicamento’, como costumamos fazer quando falamos de doenças raras.

A gente tem olhado muito para a árvore e se esquecido da floresta que a circunda. Sistemas de saúde são sistemas complexos. É necessário pensar globalmente, para agir localmente.

Em doenças raras, precisamos olhar a floresta, e não só a árvore.

Em primeiro lugar, o relatório destaca os problemas enfrentados pelas pessoas que vivem com doenças raras, numa longa lista que já é bastante familiar a pacientes, familiares, pesquisadores e cuidadores. Depois, enaltece os avanços na criação de ferramentas diagnósticas, particularmente na área da biologia molecular.

Observa também que terapias sintomáticas e tratamentos da causa do problema têm sido concebidos, resultando em melhora na qualidade e expectativa de vida de uma pequena parcela desta população. Pequena mesmo! Afinal, acredita-se que apenas 5% das doenças raras disponham no momento de tratamento medicamentoso.

Mas estes avanços cobram seu preço, segundo o documento. Como estas pessoas dificilmente ficam curadas, frequentemente irão demandar cuidado terapêutico permanente e intensivo, ao longo de toda a sua existência, dado o caráter crônico destas enfermidades.

Isto lança desafios especiais aos sistemas de saúde, especialmente em função das limitações econômicas  e estruturais  que eles já enfrentam, particularmente com vistas à provisão de cuidados necessários, sustentáveis, apropriados e adequados, determinados pelo quadro regulatório alemão.

Estes desafios dizem respeito a como oferecer cuidados que contemplem o padrão de conhecimento reconhecido para todas as pessoas com doenças raras, sem deixar de considerar aspectos éticos que serão o tema de nossa seção seguinte.

Aspectos éticos

Estou aqui resumindo para você o relatório do Comitê de Ética da Alemanha. Apenas para te lembrar :).

O documento prossegue afirmando que os doentes raros representam  um dos mais vulneráveis grupos na sociedade . Já parou para pensar nisso? Pra mim finalmente caiu a ficha! É isto ! E o relatório diz que ela decorre principalmente de dois fatores:

  1. Da severidade e do caráter crônico de sua enfermidade, e
  2. da pesada carga colocada sobre os ombros da família, que pode ser aumentada, se outros parentes tiverem a mesma condição ou na ausência de planejamento familiar.

“Os doentes raros são um dos grupos sociais mais vulneráveis da atualidade”

Também contribui para a vulnerabilidade dos doentes raros, segundo o documento,  a orientação estrutural  dos sistemas de saúde. E este é um aspecto pouco considerado pelos pacientes que padecem de doenças raras, bem como seus familiares. Na verdade,  sistemas de saúde são preparados e concebidos para lidar com doenças comuns , e não com doenças raras.  Doenças comuns são a regra em saúde pública; doenças raras, exceção. 

A marginalização deste grupo, como de resto a de qualquer grupo vulnerável, observa o Conselho de Ética da Alemanha, faz com que o doente raro corra o risco de não ter alívio adequado para seu sofrimento. Princípios (bio)éticos gerais como o da auto-determinação, da beneficência e da não-maleficência podem ser desconsiderados nestes casos, assim como o principio da justiça, observam os alemães.

Por conta disso, criei um box mais abaixo para você entender estes princípios, em linhas bem gerais.

Sobre o princípio da justiça , um dos quatro princípios canônicos da Bioética, precisamos ver a situação de forma  mais detalhada, segundo o relatório. Um aspecto lembrado pelo documento, embora muitos gestores costumem esquecer, é que há certo consenso geral no sentido de que uma sociedade baseada na solidariedade, conceito muito estudado em Direito Constitucional, deve dar a todos seus membros uma chance justa de obter tratamento adequado em caso de enfermidade, seja sua doença comum ou rara.

Sobre solidariedade, a Constituição Federal de 1988, nossa Carta Magna tão maltratada, também assim se manifesta:

A solidariedade, na Constituição Federal de 1988
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária. […]

Mas o princípio da justiça, segundo os especialistas alemães aqui retratados, em se tratando de doenças raras, precisa ser melhor analisado. Uma dimensão do mesmo nos aconselha a nos certificar da viabilidade econômica de potenciais tratamentos.

Nesse sentido, as técnicas de priorização de intervenções em saúde, como as Avaliações de Tecnologias em Saúde, tão abordadas nesse blog, teriam seu lugar. Isto porque, se queremos administrar recursos escassos com justeza e correção, técnicas como as análises de custo-efetividade (também muito comentadas nesse blog) empregadas pela CONITEC, teriam seu lugar.

Assim, pensando num sistema de saúde como um todo, que deve assegurar o melhor padrão de saúde  para toda a população , e não somente para os doentes raros, deveria-se, em tese, sempre se procurar ‘entregar’ intervenções de saúde à sociedade com robustas evidências sobre sua efetividade e alto grau de benefício individual por ela proporcionado. O documento afirma que isto se torna mais relevante ainda, quando se discute a incorporação de medicamentos de alto custo a estes sistemas. Este é habitualmente o caso das doenças raras.

Mas aqui vem  um aspecto importante apontado no relatório . Dado o pequeno número de pacientes com uma mesma doença rara recrutados para este ou aquele estudo clínico,  seria muito mais difícil alcançar o mesmo grau de confirmação probatória da custo-efetividade destes tratamentos , quando em comparacão com terapias para doenças comuns.

Ora, se uma agência de ATS (e aqui me refiro a qualquer uma) não possuir uma abordagem distinta para lidar com medicamentos para doenças raras (dada a quase impossibilidade de comprovar sua custo-efetividade com os mesmos critérios empregados para ATS de medicamentos para doenças comuns), é evidente que aqui estaremos diante da inobservância do principio bioético da justiça, que redundará na não-incorporação daquele medicamento (muitas vezes o único disponível no planeta para aquela doença rara) ao sistema de saúde.

Isso fará com que o paciente que se sentir lesado busque seus direitos ao medicamento na Justiça. Afinal, no Brasil, por exemplo, a Constituição Federal afirma que a saúde é direito de todos e dever de Estado (o mantra!). Instada pelo MPF-RS em 2018 a se pronunciar sobre o assunto, a CONITEC reconheceu a impropriedade de se adotar os mesmos critérios de avaliação para tecnologias de saúde voltadas para doenças raras e prevalentes. Mas este é tema de post futuro.

Medicina de precisão

Doentes raros são pioneiros morais de uma sociedade que já está  batendo à porta, aquela baseada na medicina da precisão. Isto é fato. O próprio Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em artigo de 2019, explica o conceito e diz que, no Brasil, o material sobre o assunto ainda é escasso. Para se ter uma idéia, a Associação Brasileira de Medicina Personalizada e de Precisão foi criada somente em 2017.

Independente do que digam os sanitaristas, ou aqueles admiradores e construtores da Reforma Sanitária Brasileira, esta é uma tendência que se desenha no horizonte global para a(s) próxima(s) década(s). É uma inexorável revolução que se afigura no horizonte, com impactos ainda imprevisíveis para o campo da saúde populacional. Os gestores em saúde poderiam aprender algo com estes pacientes, para enfrentarem estas mudanças quando elas chegarem, de forma menos conflituosa ou dramatica.

Pois bem. O relatório alemão aponta que vários autores têm destacado que o tratamento das doenças raras deve ser considerado um projeto-piloto, um aquecimento para o desenho de sistemas de saúde do futuro. E aqui vale a pena citar textualmente o documento.

Em geral, afirma-se que os sistemas de saúde devem ser revisados de forma a se preparar melhor para lidar com o impacto deste desenvolvimento [a medicina de precisão] de um modo justo, eficiente e efetivo. Em particular, a assistência médica para pessoas com doenças raras deve ser reorganizada hoje para que sejam criadas as estruturas que respondam a esta tendência generalizada na medicina. Este é outro importante argumento ético para que voltemos nossas atenções à distribuição de recursos e à vulnerabilidade específica das pessoas com doenças raras.

Para reduzir a vulnerabilidade dos doentes raros, o Conselho de Ética Alemão recomenda medidas relacionadas à:

  • Proteção contra tratamento deficiente e inadequado; e
  • Empoderamento dos pacientes.

É o que traremos na segunda parte deste interessante post, na próxima semana. Até lá!

E então? Você acha que o Brasil observa princípios éticos adequados para a prestação do cuidado em doenças raras? Deixe abaixo seu comentário! Nós gostamos muito de conhecer suas opiniões.  🙂

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Cláudio Cordovil Pesquisador em Saúde Pública
Jornalista profissional. Servidor Público. Pesquisador em Saúde Pública (ENSP/Fiocruz). Especializado em Doenças Raras, Saúde Pública e Farmacoeconomia . Mestre e Doutor em Comunicação e Cultura (Eco/UFRJ). Prêmio José Reis de Jornalismo Científico concedido pelo CNPq.

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